Esta é a segunda parte do texto. Leia a primeira coluna aqui.
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Bicha, bicha, bicha. Como seria recebida hoje aquela antiga coluna do Tarso de Castro na qual ele chamava todo mundo de bicha? Uma crônica divertidíssima. Segue um trecho em que ele, gaúcho que era, cita o Rio Grande Amado:
"Tenho melancolia do Rio Grande do Sul porque as bichas que aqui são bichas não são bichas como lá; Olavo Bilac é bicha; o bigodinho do Oscar Niemeyer não me engana, é bicha; ora, Tom Jobim, vai ser bicha lá com a bicha do Frank Sinatra; como se não bastasse, de bichas, é claro, agora ainda anda por aí aquela bicha da Florinda; a bênção, minha bicha Baden; falando em bicha, nada melhor do que uma bicha do Jorge Ben depois da outra; Charles Anjo 45 é bicha enrustida; você é bicha; o leitor, todos os leitores, são bichas".
É que toda ofensa é egoica. Quer dizer: a sua essência, na verdade, leitor, não pode ser ofendida. É o seu ego que se ofende.
Era uma gozação, óbvio, só que hoje as pessoas se levam muito a sério, Tarso enfrentaria a fúria das redes. Suspeito que não daria bola.
Mas o mais curioso é como é hoje e era ontem encarada a mesma palavra, "bicha". Os machões da época de Tarso ficavam fulos se eram chamados de bichas. Dava confusão. Agora é o contrário: basta simplesmente pronunciar "bicha" e alguém interpelará: "Você é homofóbico?".
Neste caso, houve uma evolução, porque ninguém tem que ficar julgando a sexualidade alheia. Sei que o politicamente correto é odiado por muitos, e que esse ódio ajudou nas eleições de Trump e de Bolsonaro, mas, olha, o movimento, se é que se pode chamá-lo assim, não é uma coisa ruim em si. É algo positivo, porque antes qualquer diferença poderia se tornar motivo de perseguição. A gordinha não gostava de ser chamada de baleia, o magricela não gostava de ser chamado de caniço, mas eles não encontrariam solidariedade em parte alguma se quisessem reclamar.
Eu tenho cá uma regra: não estamos no mundo para fazer mal às outras pessoas, certo?
Certíssimo.
Então, tracei uma regra: se percebo que dizer algo realmente ofende alguém, evito dizer. Não me apetece deixar os outros chateados. Porém, ah, porém, a questão é o aumento das suscetibilidades. Como se movimentar sem tocar em algum ponto sensível de alguma pessoa? Não basta você não mencionar uma suposta "diferença", você tem que gostar de tudo do que a outra pessoa gosta. Até o bife de fígado e as músicas de Natal da Simone contam com defensores ferozes. Fale mal deles e uma legião se ofenderá.
As pessoas se ofendem com muita, muita facilidade, e cada vez mais.
Por quê?
É que toda ofensa é egoica. Quer dizer: a sua essência, na verdade, leitor, não pode ser ofendida. É o seu ego que se ofende. Você constrói uma imagem de si mesmo e, se algo encosta naquela imagem, você pula de dor. Hoje, com a superexposição de opiniões, o que você pensa e do que você gosta passam a fazer parte dessa imagem, ela vai inchando a cada dia, e o seu ego se torna ainda maior. Por isso, mais suscetível. Então, se alguém espeta o seu ego, você reage. Ofensa contra ofensa, agressão contra agressão. É a velha Lei de Talião. O problema é que essa atitude vai engrossar o caldo das ofensas e aumentar o seu ego e torná-lo cada vez mais suscetível.
Grandes pacifistas descobriram esse processo, a começar por Buda e Jesus, que usaram a mesma imagem para ensinar que a vingança faz mal a quem se vinga, o símbolo de toda ofensa: o tapa na cara. Isso foi compreendido por outros super-homens, Thoreau, Gandhi, Luther King, Mandela. E eles mudaram o mundo simplesmente não reagindo.
Aí é que está. Você considera insultuosa uma opinião diferente da sua? Você detesta alguém que não gosta do que você gosta? Você se sente ultrajado com facilidade? A culpa não é minha. A culpa é do seu ego, que está acima do peso. Aquela baleia.