Um juiz americano, uma vez, disse-me o seguinte:
"Aqui, nos Estados Unidos, em primeiro lugar vem a criança; em segundo lugar, o velho; em terceiro, a mulher; em quarto, o cachorro; em quinto, o homem".
Temos de estabelecer, no Brasil, o conceito de que a criança está em primeiro lugar. Para fundar uma nação, sim, mas também por compaixão.
Não se trata de uma norma legal, óbvio, isso não está escrito em lugar algum. É um conceito. A lei é igual para todos, mas tem obrigação de proteger os mais fracos. Não que os mais fracos ganhem privilégios; é proteção mesmo. Não é nem uma questão de forçar a igualdade; é uma questão de impedir a opressão da desigualdade.
Essa maneira de olhar o mundo se estende para os cidadãos, o que dá para perceber no dia a dia: quando estou com meu filho, noto que as pessoas fazem mais deferências – elas dão passagem, elas cedem o lugar, elas deixam que você siga na frente.
Aqui, em Massachusetts, as crianças têm educação e saúde de excelente nível garantidas até os 18 anos de idade. E, como tudo nos Estados Unidos, isso exerce sua função prática: uma criança que se formou com boa saúde e boa educação será um bom cidadão. Assim, o Estado ganha a longo prazo, porque terá mão de obra qualificada e gastará menos com saúde e repressão policial. Como dizia Darcy Ribeiro, você gasta com escola para não ter de gastar com presídio.
Mas a prioridade à infância existe também por causa de outro sentimento característico de padrões avançados de civilização: por causa da compaixão. Se você tem filhos, ou se simplesmente tem alguma sensibilidade, sabe como a criança necessita de amparo. Porque a criança não apenas pode ser dominada fisicamente por qualquer adulto: ela pode ser enganada com facilidade.
Há alguns anos, a Xuxa veio a público revelar que havia sido abusada por um parente quando menina. Houve quem a criticasse: por que ela só disse isso agora? Por que não denunciou o abusador na época em que o crime era cometido?
Ocorre que a criança não sabe que está sendo abusada. Se, por exemplo, ela é criada em um meio violento, é esse o seu padrão de realidade. Ela acha que apanha porque é assim que é. Ela acha que aquilo que aquele tio fez é normal. Que acontece com todo mundo.
Depois, ao crescer, a mulher adulta compreende que foi abusada em seu tempo de menina. Aí, muitas vezes, ela não denuncia porque já passou tanto tempo, porque o abusador já está velho demais, porque ninguém acreditaria nela. Ou porque a criticariam, como criticaram a Xuxa.
A criança é indefesa. A criança depende da nossa proteção. Uma nação de verdade se constrói a partir de suas crianças. Do cuidado com suas crianças. O Brasil precisa, mais do que tudo, investir em escola pública, em policlínicas que tratem prioritariamente das crianças e em uma legislação que seja implacável contra quem viole de alguma forma, de qualquer forma, a infância.
Escrevo isso porque ainda estou abalado com o assassinato da pequena Eduarda. Uma menininha de nove anos de idade, que brincava na frente de casa e foi levada por um monstro, que a matou. O desgraçado a matou por afogamento. A mãe de Eduarda foi reconhecer o corpo no dia seguinte. Em seus ombros, ela leva tatuada a frase "Eduarda, meu amor, minha vida". Não há mais amor, não há mais vida. Não há explicação para isso, não há ponderação possível, não pode haver perdão. Temos de estabelecer, no Brasil, o conceito de que a criança está em primeiro lugar. Para fundar uma nação, sim, mas também por compaixão. Para que meninas como a pequena Eduarda possam crescer e se desenvolver. E brincar em paz.