Passei alguns dias em Washington e, neste período, li muito o jornal local. No caso, um diário de certa importância, o Washington Post. Você dirá que sou antigo, porque hoje o Washington Post pode ser lido em qualquer lugar, graças ao coruscante mundo virtual. É verdade. Só que jornal, para mim, não é apenas um bebedouro de informação. Há, no ato de ler jornal, uma experiência tátil e visual. O prazer de sentar-se com uma xícara de café fumegante ao lado e sorver página por página. Além disso, o papel dá informações extras: você pode medir a importância de um assunto pela explosão da capa ou pela extensão da cobertura. No jornal, uma página inteira dedicada a um tema passa ao leitor a ideia da dimensão do que é tratado. Na internet, não; porque a internet é um poço sem fundo. O espaço tem pouco significado na internet. Tanto que os veículos permitem que os leitores façam comentários aos milhares e acham que, quanto mais, melhor.
Mas, como vinha dizendo até ser bruscamente interrompido, li no Washington Post deste domingo um texto bastante interessante, escrito por um general da reserva do exército americano. Ele se chama Stan McChrystal e o texto, aliás alentado, levava o título de "Good riddance", expressão americana que mais ou menos se equivale à nossa “Já vai tarde”, só que não tão forte.
Nesse artigo, o general contou que, quando era um jovem tenente, sua esposa lhe deu de presente uma pintura que retratava Robert E. Lee, líder dos exércitos sulistas na Guerra Civil. McChrystal ficou encantado com o mimo. Lee, chamado pelos americanos de Homem de Mármore, era seu ídolo – por sua integridade, sua bravura, sua lealdade.
O quadro ficou pendurado na parede da sala da casa do general por 34 anos, até que, em 2017, supremacistas brancos promoveram protestos violentos carregando tochas e vestindo aqueles lençóis furados da Ku Klux Klan. Os supremacistas se revoltavam, exatamente, contra a remoção de uma estátua de Robert Lee de uma praça da cidade de Charlottesville. Então, a mulher do general, Annie, ponderou que talvez eles devessem remover o quadro da parede, a fim de não ofender alguns de seus visitantes mais sensíveis. O general, primeiro, argumentou que Lee representava valores elevados, e não o racismo. Depois, porém, refletiu melhor e decidiu que era hora de Lee se retirar – por isso o “já vai tarde”.
O resto do texto tece uma reflexão sobre as mudanças da sociedade moderna e tudo mais, mas o que realmente me ficou foi a imagem do quadro removido da parede. Antes, o quadro era um orgulho para o general; hoje, poderia ser uma vergonha.
É que suscetibilidades são culturais. Pelo menos grande parte delas. O que há 10 anos era uma graça agora pode ser uma ofensa. Mas acontece o contrário, também: o que há 10 anos era uma ofensa agora se tornou banalidade. Chamar um homem de bicha, tempos atrás, era pedir briga. Sério. Os caras se achavam realmente agredidos por um “e aí, bichona”, ou coisa que o valha. Lembro de uma crônica sensacional do Tarso de Castro que começava assim:
“Millôr Fernandes chegou da Europa e é bicha: Martha Alencar é bicha e o marido dela, o Hugo Carvana, bicha; o Sérgio Cabral, por sua vez, tem vergonha, acha que pai de família não deve confessar isso, mas eu sei que é bicha; o Paulo Francis, que fica fazendo aquele bico, é bicha; o Chacrinha, nem se fala, é bicha; o Gérson, mesmo jogando pra burro, é bicha; o Fortuna é bicha, bicha declarada, o Armando Marques é bicha; a tia da namorada do Denner é bicha; a namorada do Denner é bicha; o Denner é bicha; o Edvaldo Pacote é bicha, a Gal Costa é bicha; a Elis Regina é bicha; o Nelsinho Motta é bicha…”.
Na crônica inteira, divertidíssima, o Tarso chama os outros de bichas, menos um, que não conto, para não dar spoiler. Tenho a maior curiosidade para saber como seria recebida uma crônica dessas hoje em dia, quando as pessoas se levam tão a sério. Vou publicar a crônica do Tarso nas redes e interromper a minha aqui, para continuar na próxima coluna. Falarei de bichas. Aguarde.