As cenas do último fim de semana, com homens e mulheres cantando e gritando palavras de ódio racial, chocaram o mundo, em especial por terem ocorrido naquela que se consagrou como a terra da liberdade. Veio à tona, nas ruas de Charlottesville, cidade universitária de 50 mil habitantes no Estado sulista da Virgínia, nos Estados Unidos, a proeminência de movimentos da extrema-direita americana. O grupo de direitos humanos Southern Poverty Law Center (SPLC), responsável pelo rastreamento de neonazistas e racistas em geral desde os anos 1960, conta que monitora mais de 1,6 mil organizações de ideologia extremista no país. São pelo menos 99 grupos e grupelhos neonazistas, cem nacionalistas brancos, 93 neoconfederados. Há quem diga que a eleição do presidente republicano Donald Trump, no final do ano passado, deu sinal verde a agremiações de extrema-direita.
De acordo com o Southern Poverty, os grupos extremistas aumentaram em 17% nos últimos três anos. Os focos deles são imigrantes e refugiados, que ameaçariam seu modo de vida, além de negros, homossexuais e judeus, minorias que, de alguma forma, contrariam o padrão idealizado de uma América branca aferrada a tradições cristãs. Uma convocação do Movimento Nacional Socialista americano para as manifestações é citada como exemplo, pelo Southern Poverty. Diz que o evento se destinava a "unir a direita contra o avanço do comunismo totalitário, protestar contra as políticas de imigração dos EUA e da Europa e afirmar o direito dos sulistas e dos brancos de organizarem os seus interesses como qualquer outro grupo pode fazer, sem serem perseguidos".
Leia mais
Depois de Charlottesville: seria o nazismo uma ameaça concreta?
Não adianta só derrubar estátuas. Ideologias não morrem a marretadas
Houve "culpa dos dois lados", diz Trump sobre atos racistas em Charlottesville
Jair Krischke, líder do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), sediado em Porto Alegre, afirma não se surpreender:
– A verdade é que isso é recorrente nos EUA. Esses grupos tradicionalmente são contra negros e atacam judeus. É um negócio maluco, mas perigoso. Os EUA sempre valorizaram os direitos individuais, mas deve haver limites, e um dos limites é o racismo e a defesa do racismo que houve nessa manifestação.
Dois detalhes surpreenderam Krischke:
– É assustador um menino de 20 anos ter pensamentos tão retrógrados (referência a James Fields, acusado de homicídio por matar a ativista Heather Heyer, 32 anos, ao jogar seu Dodge Challenger contra a multidão de manifestantes contrários ao evento de Charlottesville). É aí que vemos que o assunto é muito grave, a ponto de influenciar um jovem. Outra coisa é Trump. Na primeira reação, falou como se houvesse dois lados. Só que não há dois lados. Há um só, gravíssimo. O que seria o outro é contra a barbárie.
– Há culpa dos dois lados – disse Trump.
Krischke critica a permissividade institucional americana, e um exemplo tem sido citado frequentemente. A Suprema Corte americana invocou a Primeira Emenda (que trata da liberdade de expressão na constituição) para garantir o direito de um grupo neonazista de protestar na cidade predominantemente judaica de Skokie, Illinois, portando suásticas.
Espaço aberto para o extremismo crescer
Professor da Universidade Católica da América, em Washington, John White fala em um "vácuo de ideias no momento conservador" e define o "movimento supremacista branco" como "um grande desafio".
Professor de ciência política da Universidade do Alabama, George Hawley pesquisa o movimento da supremacia branca e chegou a uma conclusão que pode dar sinais sobre o advento dos atuais grupos extremistas: concluiu que muitos dos seus membros (que ele entrevistou) não herdaram o racismo de seus pais, mas o desenvolveram pela internet.
Pelas declarações dos movimentos de extrema-direita, fica claro que os apoios recebidos por Trump para se eleger encorajam manifestações como a de Charlottesville. No Twitter, David Duke, ex-líder da Ku Klux Klan (KKK) e participante do evento, deu um recado para o presidente americano: "Eu recomendaria que você se olhasse bem no espelho e se lembrasse que foram os americanos brancos que o colocaram na presidência".
A KKK, aliás, além de ser o mais tradicional grupo racista americano, tem sua história intimamente ligada à manifestação de Charlottesville. Agremiação supremacista branca mais conhecida, alardeada e temida da história americana, a organização, caracterizada por suas tochas e capuzes estampadas no imaginário do horror, foi formada por ex-soldados confederados depois da Guerra da Secessão (1861-1865), na qual os Estados escravagistas do sul saíram derrotados. Diante do revés, eles se organizaram e criaram a KKK. E qual foi o motivo para a manifestação de ódio ter ocorrido em Charlottesville? Os seus participantes se insurgiam contra a intenção do Legislativo local de remover a estátua do general Robert Lee, comandante do exército confederado, do Emancipation Park, no coração da cidade. Dos confederados de um século e meio para cá, surgiram grupos afiliados à KKK em quase todos os Estados americanos, reunindo entre 5 mil e 8 mil membros, de acordo com o Southern Poverty Law Center.
_______________
OS PROTAGONISTAS DE CHARLOTTESVILLE
Alt-right
O nome é abreviação de alternative right, ou direita alternativa, que defende a "civilização ocidental tradicional" e a "identidade branca". Em comum, além do racismo, da misoginia e da homofobia, os integrantes dessa organização rejeitam o que chamam de "politicamente correto". Verbalizam o apoio a Trump, a quem têm como ídolo, e atuam muito nas redes sociais. Caracterizam-se pela elaboração de memes e tentam viralizá-los.
Ku Klux Klan (KKK)
É o grupo mais conhecido. Aparecem em diversos filmes, com seus capuzes e tochas característicos. Fundado por confederados após a Guerra da Secessão (1861-1865), promoviam julgamentos racistas e executavam as vítimas. Os alvos tradicionais são negros e judeus. Atualmente, homossexuais também. Os confederados defendiam a autonomia dos Estados sulistas que queriam manter a escravidão. Não é mais um movimento restrito ao sul americano.
Aliança Nacional (NA, nazista)
Um dos vários grupos que professam racismo em geral e antissemitismo muito em particular, a NA tem em Adolf Hitler e no nazismo as suas maiores referências. Há, além da NA, o Partido Nazista Americano e o Movimento Socialista Nacional (NSM), grupos afins. É incerto o número de simpatizantes. Os dados variam entre 400 e 2,5 mil espalhados em algo como 32 dos 50 Estados americanos.
Partido Nazista Americano (ANP)
Fundado com o objetivo de reviver o nazismo nos Estados Unidos. Tem sede em Arlington, na Virginia. Seu primeiro nome foi União Mundial da Livre Empresa Nacional Socialista (WUFENS). Mudou a designação e se tornou partido em 1960. Vê em Hitler uma referência e nega o Holocausto. Costuma publicar livros e histórias em quadrinho racistas para influenciar as crianças. "Enviá-los de volta à África" é um lema.
Conselho de Cidadãos Conservadores
É a organização que teria inspirado Dylann Roof , 21 anos, a matar nove pessoas em uma igreja de Charleston, Carolina do Sul, há pouco mais de dois anos. Classificado como organização de supremacistas brancos e fundado em 1985, o grupo chegou a elaborar um estudo sobre a violência de negros contra brancos. A entidade, segundo ela própria, "investiga e trabalha pelo interesse legítimo dos brancos como grupo".
James Fields, o rosto
James Fields, 20 anos, personificou a cena mais dramática de Charlottesville. Jogou seu carro contra uma multidão de ativistas antirracismo e matou a assistente jurídica Heather Heyer, 32 anos, deixando ainda 19 feridos. Fields tem opiniões supremacistas, admira o nazismo. Foi dispensado pelo exército quando tentou ser soldado e é conhecido da polícia pelos atos violentos, incluindo o de espancar a mãe, uma cadeirante.
Jason Kessler, o organizador
Jason Kessler, um conservador de Charlottesville, foi o principal organizador da manifestação. Nos últimos meses, notabilizara-se por pregar contra os planos do Legislativo local de retirar a estátua do general Robert Lee, comandante dos confederados na guerra civil dos EUA, do Emancipation Park de Charlottesville, parque que já portou o nome do militar. Também criticava a postura do governo municipal de oferecer abrigo a imigrantes.
Internautas avulsos
Os lobos solitários do racismo americano foram rastreados. Perfil criado no Twitter com o nome "Yes, you are racist" ("Sim, você é racista"), criado em 2012 e com 400 mil seguidores, tem rastreado racistas. Cole White, um dos primeiros identificados, foi demitido do restaurante onde trabalhava em Berkeley (Califórnia). Peter Cvjetanovic, outro identificado no Twitter, disse defender valores europeus e rejeitar a "substituição da herança branca".