David Coimbra

David Coimbra

Colunista de ZH e GZH e comentarista da Rádio Gaúcha, teve 18 livros publicados. Prêmios: 10 ARI, Esso de Reportagem, Direitos Humanos, Habitasul de Literatura, Erico Verissimo de Literatura, Açorianos de Literatura, entre outros. David faleceu em 27 de maio de 2022 após 10 anos de luta contra o câncer. Suas crônicas seguirão disponíveis em GZH.

Livro

Como Rita Lee perdeu a virgindade

Uma autobiografia que é um mistério

David Coimbra

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Quando Rita Lee tinha cinco anos de idade, a máquina de costura da mãe dela quebrou. A mãe, então, comunicou à fábrica, que mandou um técnico para solucionar o problema. O homem chegou e foi levado para onde estava a máquina. Enquanto ele tentava descobrir o defeito, o telefone tocou e a mãe de Rita foi atender, deixando-a sentada no chão, brincando. Quando voltou, não encontrou mais o técnico, mas viu Ritinha de pernas abertas no parquê, olhando petrificada para uma chave de fenda que o homem havia introduzido em sua vagina, rompendo-lhe o hímen.

O ressentimento é um defeito horrível, porque faz toda derrota imensa e toda vitória insuficiente.

Essa história é narrada pela própria Rita Lee no começo da sua autobiografia, lançada há ano e meio. O pequeno capítulo, não mais do que uma página, leva o título de Desvirginando. Ela não faz muitas considerações a respeito do que ocorreu, nem tece reflexões. É como se lembrasse de um acidente trivial, do gênero “um dia caí de uma árvore e quebrei a perna”.

Rita Lee relata esse caso, e outros tantos, com uma casualidade quase chocante, no estilo de diário de menina. O texto é quase adolescente, embora tenha sido escrito por uma septuagenária, como se ela não desse importância à própria história. Mas, se ela não dá importância à própria história, por que contá-la?

Foi o que fiquei tentando descobrir a cada página que avançava. Já li outras críticas dessa biografia, a maioria negativa, mas nenhuma me satisfez. Porque o livro é um mistério. Rita Lee é a cantora de maior sucesso comercial da história do Brasil, a quarta maior vendedora de discos, mais de 55 milhões de cópias, perdendo apenas para Roberto Carlos, Tonico e Tinoco e Nelson Gonçalves. Como ela alcançou essa façanha? Rita não responde no livro.

O tempo todo ela se deprecia, definindo-se como uma cantora menor. Descreveu um episódio em que cantou com ninguém menos do que João Gilberto meio que de improviso, sem ensaiar uma única vez: “Era uma missão impossível para uma roqueira porra-louca e desafinada feito eu”. Mas ela foi em frente, fez o dueto e, pela sua avaliação, até que desempenhou “bonitinho”.

Lembrava vagamente desse especial de João Gilberto na TV e o procurei no YouTube para assistir outra vez. Será que Rita fora tão medíocre quanto dizia no livro?

Assisti… E, nossa!, ela está impecável. Formou uma dupla tão perfeita com o exigente João Gilberto, que não dá para acreditar que não ensaiaram.

Por que ela se diminuiu?

Assim é todo o livro. Os Mutantes, grupo de rock histórico no Brasil, ela reduz a uma bandinha amadora. E, quando alguém lhe faz alguma grande demonstração de afeto, o comentário de Rita é sempre entre o brejeiro e o desdenhoso: “Fofo”.

Por que uma mulher bem-sucedida, amada e admirada apresentou um resumo tão cinzento de sua vida, sendo que sua vida, ao contrário, foi luminosa?

Tenho cá um palpite: ressentimento. Rita é uma mulher ressentida. Ela não esqueceu os reveses da vida, como sua demissão dos Mutantes. Ela não perdoou. E, para disfarçar esse amargor, resolveu ser leve demais, e tão leve foi, que o livro ficou sem peso algum.

O ressentimento é um defeito horrível, porque faz toda derrota imensa e toda vitória insuficiente.

Pensei em Rita Lee e em seu livro por causa das eleições. Porque, depois do dia 28, vivendo juntos no Brasil, compartilhando o país, haverá muitos perdedores e muitos vencedores. E, para que as coisas comecem enfim a dar certo para nós, espero que poucos ressentidos.

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