Quando Rita Lee tinha cinco anos de idade, a máquina de costura da mãe dela quebrou. A mãe, então, comunicou à fábrica, que mandou um técnico para solucionar o problema. O homem chegou e foi levado para onde estava a máquina. Enquanto ele tentava descobrir o defeito, o telefone tocou e a mãe de Rita foi atender, deixando-a sentada no chão, brincando. Quando voltou, não encontrou mais o técnico, mas viu Ritinha de pernas abertas no parquê, olhando petrificada para uma chave de fenda que o homem havia introduzido em sua vagina, rompendo-lhe o hímen.
O ressentimento é um defeito horrível, porque faz toda derrota imensa e toda vitória insuficiente.
Essa história é narrada pela própria Rita Lee no começo da sua autobiografia, lançada há ano e meio. O pequeno capítulo, não mais do que uma página, leva o título de Desvirginando. Ela não faz muitas considerações a respeito do que ocorreu, nem tece reflexões. É como se lembrasse de um acidente trivial, do gênero “um dia caí de uma árvore e quebrei a perna”.
Rita Lee relata esse caso, e outros tantos, com uma casualidade quase chocante, no estilo de diário de menina. O texto é quase adolescente, embora tenha sido escrito por uma septuagenária, como se ela não desse importância à própria história. Mas, se ela não dá importância à própria história, por que contá-la?
Foi o que fiquei tentando descobrir a cada página que avançava. Já li outras críticas dessa biografia, a maioria negativa, mas nenhuma me satisfez. Porque o livro é um mistério. Rita Lee é a cantora de maior sucesso comercial da história do Brasil, a quarta maior vendedora de discos, mais de 55 milhões de cópias, perdendo apenas para Roberto Carlos, Tonico e Tinoco e Nelson Gonçalves. Como ela alcançou essa façanha? Rita não responde no livro.
O tempo todo ela se deprecia, definindo-se como uma cantora menor. Descreveu um episódio em que cantou com ninguém menos do que João Gilberto meio que de improviso, sem ensaiar uma única vez: “Era uma missão impossível para uma roqueira porra-louca e desafinada feito eu”. Mas ela foi em frente, fez o dueto e, pela sua avaliação, até que desempenhou “bonitinho”.
Lembrava vagamente desse especial de João Gilberto na TV e o procurei no YouTube para assistir outra vez. Será que Rita fora tão medíocre quanto dizia no livro?
Assisti… E, nossa!, ela está impecável. Formou uma dupla tão perfeita com o exigente João Gilberto, que não dá para acreditar que não ensaiaram.
Por que ela se diminuiu?
Assim é todo o livro. Os Mutantes, grupo de rock histórico no Brasil, ela reduz a uma bandinha amadora. E, quando alguém lhe faz alguma grande demonstração de afeto, o comentário de Rita é sempre entre o brejeiro e o desdenhoso: “Fofo”.
Por que uma mulher bem-sucedida, amada e admirada apresentou um resumo tão cinzento de sua vida, sendo que sua vida, ao contrário, foi luminosa?
Tenho cá um palpite: ressentimento. Rita é uma mulher ressentida. Ela não esqueceu os reveses da vida, como sua demissão dos Mutantes. Ela não perdoou. E, para disfarçar esse amargor, resolveu ser leve demais, e tão leve foi, que o livro ficou sem peso algum.
O ressentimento é um defeito horrível, porque faz toda derrota imensa e toda vitória insuficiente.
Pensei em Rita Lee e em seu livro por causa das eleições. Porque, depois do dia 28, vivendo juntos no Brasil, compartilhando o país, haverá muitos perdedores e muitos vencedores. E, para que as coisas comecem enfim a dar certo para nós, espero que poucos ressentidos.