Às vésperas de completar 69 anos, dia 31, Rita Lee curte a vida sossegada sob a sombra e a água fresca que cantou em Ovelha negra, hit de 1975 que marcou a ascensão da rainha roqueira ao trono da música pop brasileira.
Dando um tempo dos palcos e desde 2012 sem lançar disco, a artista apresenta seus arquivos e memórias no livro Rita Lee – Uma autobiografia.
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A publicação é relativamente enxuta (296 páginas) para uma personalidade com sua dimensão, mas contempla, em prosa de querido diário, fatos relevantes de uma rica e prolífica trajetória. E revisita, em paralelo, o período mais efervescente da música e da cultura brasileiras, paradoxalmente (e também em decorrência disso) erguido sob a repressão da ditadura militar.
Paulistana que mistura o sangue italiano da mãe com o DNA norte-americano do pai, caçula entre três irmãs, Rita é generosa com seus afetos, entre eles a família e parceiros de caminhada como Gilberto Gil e Elis Regina. E é impiedosa com seus desafetos, em especial os irmãos Arnaldo Baptista e Sérgio Dias Baptista, com quem formou Os Mutantes. O trio que injetou psicodelia no movimento tropicalista ao apoiar Gil em Domingo no parque, no Festival da Record de 1967, para ela, é superestimado – destaca que não era uma presença acessória no grupo listando sua participação efetiva em letras (80%), músicas (40%), arranjos (30%) e figurinos (100%).
Rita sempre foi reservada ao falar de seu relacionamento com Arnaldo. Os irmãos Baptista surgem no livro como garotos de classe média alta que se achavam gênios na pretensão de serem os Beatles brasileiros. Filhos de uma família excêntrica, pouco asseados nos hábitos de higiene e nerds que tinham como assunto único especificidades de equipamentos musicais. Se havia com Arnaldo empatia suficiente para a parceria virar um morno romance, eram permanentes as faíscas com Sérgio, guitarrista talentoso mas sem alma, segundo Rita.
Antes de ser expulsa da banda, em 1972, com a justificativa de não ser boa instrumentista para encarar a fase progressiva virtuosa na qual o grupo queria embarcar, Rita já se lançava, desde 1970, como artista solo. Após três álbuns sem maior repercussão, viu a sorte virar a partir do LP Fruto proibido (1975), acompanhada pela banda Tutti Frutti, que além de Ovelha negra trazia faixas como Agora só falta você e Esse tal de roquenrow. Foi acelerando ladeira acima e, em 1979 e 1980, já ao lado de Roberto Carvalho, marido, muso inspirador, grande guitarrista e pai de seus três filhos, firmou-se como a maior vendedora de discos do Brasil. Foi a época em que o país ouviu sem parar faixas como Chega mais, Doce vampiro, Mania de você, Lança perfume, Baila comigo e Caso sério.
Artista mais identificada com a anarquia e o livre-arbítrio em uma época em que ídolos populares eram cobrados pelo engajamento político, Rita não se furta de lembrar suas zonas de sombra: o abuso sexual sofrido por volta dos seis anos por um técnico que consertava a máquina de costura de sua mãe, o período na prisão e o mergulho quase sem volta nas drogas. Mas o que ganha luz nas suas memórias é a artista ungida soberana em um universo predominantemente masculino.
O tom telegráfico usado por Rita, as interjeições juvenis e a acidez jocosa destilada sobre alguns personagens – por vezes parece birra de criança – podem decepcionar quem espera mais profundidade em certos episódios, sobretudo momentos emblemáticos da música brasileira. Mas são as lembranças de Rita. Talvez o que fãs e críticos julguem ser de relevância histórica sejam, para ela, notas de rodapé, diante do grande mosaico que forma colando lembranças detalhadas da infância feliz, de seus bichos e amores – que lhe importam celebrar mais do que aquilo que já está imortalizado nos discos e na memória coletiva.
RITA LEE – UMA AUTOBIOGRAFIA
De Rita Lee
Biografia, Globo Livros, 296 páginas, R$ 44,90.