Contei aqui como a primeira startup de biotecnologia surgiu quando dois pesquisadores colocaram e expressaram com sucesso um gene de sapo em uma bactéria – o famoso experimento do príncipe sapo. Eram os anos 1970, e o termo “quimera molecular” provocava admiração em alguns, medo em outros. O que mais os cientistas iriam inventar? O mesmo tipo de discussão que hoje fazemos sobre inteligência artificial, ou terapia e vacinação com RNA. Ou que fizeram sobre energia elétrica, e devem ter feito quando surgiu a roda.
Mas continuamos a descobrir leis da natureza. Cada descoberta alimenta a criatividade daqueles que usam esse conhecimento para desenvolver novas tecnologias. E essas nos ajudam a descobrir ainda mais sobre a natureza. Há quem diga que a biologia molecular, como a inteligência artificial, subverte as leis naturais. Eu respondo: nada é mais subversivo do que o que acontece naturalmente. A natureza não obedece a nenhum regulamento – talvez só à seleção natural. Quando Darwin colecionava evidências para explicar a origem das espécies, o padrão de modificações emergentes nas gerações – que mais tarde entendemos como mutações gênicas – parecia ser sempre unidirecional. No mesmo DNA daquela espécie modificações se acumulavam, e eram ou não selecionadas pelo ambiente, gerando ou não novas espécies.
Séculos mais tarde, vimos que ocasionalmente os vírus que infectavam outros organismos podiam “roubar” genes inteiros do genoma dos hospedeiros, tornando-os mais aptos a escapar do nosso sistema imune. E que alguns vírus usavam como estratégia a integração permanente ao genoma do hospedeiro, tornando-o um transgênico – naturalmente. Mas até hoje não havia evidência do recíproco – de que genes inteiros de microrganismos que nos colonizam pudessem ser incorporados ao genoma de um organismo mais complexo, trazendo vantagem para esse hospedeiro. Neste mês, um grupo de pesquisadores da Universidade da California descreveu exatamente isso: um primeiro exemplo aquisição pelo hospedeiro de um gene inteiro, funcional, de uma bactéria, que foi fundamental para a evolução do olho dos vertebrados.
Chamamos isso de transferência horizontal, ao invés do que seria o mais frequente, a transferência vertical. Os pesquisadores usaram inteligência artificial para analisar mais de 900 genomas da árvore da vida sequenciados com as mais novas tecnologias. A análise permitiu filtrar os exemplos de aquisição horizontal e encontraram IRPB, uma proteína que carrega vitamina A entre compartimentos da retina à medida que os fotorreceptores são atingidos pela luz. Esse gene bacteriano que não existe como tal nos invertebrados teria se inserido no ancestral de todos os vertebrados há 500 milhões de anos.
Muitos confundem “natural” com “aquilo que vejo mais frequentemente”. Poucos estão preparados para ler a natureza sem preconceito. Isso se chama treinamento científico. A abordagem do cientista precisa ser flexível quanto a preconcepções. Mesmo que se passe uma vida estudando que a transferência genética é sempre vertical, é muito difícil admitir que a evidência mostra que não, nem sempre. Somos, afinal, humanos. Mas nosso treinamento nos ajuda a seguir maravilhados com a natureza, ainda que ela subverta constantemente tudo o que achamos que compreendemos.