A famosa doença do beijo: quem não teve? A mononucleose, que afeta principalmente quem entra na adolescência, é causada por um vírus da mesma família do herpes, o vírus Epstein-Barr, ou EBV. Na maioria das pessoas, principalmente em crianças, a infecção é assintomática. Em alguns, causa febre e dor de garganta; e, em poucos, sintomas muito graves, dificuldade de respirar que demanda hospitalização. Por essas características, desenvolver uma vacina nunca foi prioridade. Como resultado, a maioria de nós – 95% dos adultos – é positivo para EBV. Em algum momento de nossas vidas, contraímos o vírus, que se instala, acreditávamos, placidamente em nossos corpos para sempre.
Mas a verdade tem um jeito de se fazer presente, cedo ou tarde. Um estudo de duas décadas, seguindo 10 milhões de soldados norte-americanos e seus exames periódicos, publicado no ano passado na revista Science, trouxe a evidência mais contundente de que o EBV aumenta dramaticamente as chances de alguém desenvolver esclerose múltipla, ou EM. Essa é uma doença autoimune sem tratamento que afeta uma em cada mil pessoas; ela causa degeneração nervosa progressiva, incluindo paralisia, cegueira e surdez.
Mas, se todos têm EBV, como ele está ligado ao desenvolvimento de EM? Dos 10 milhões de soldados, 955 desenvolveram EM entre 1993 e 2013; 35 eram negativos para EBV quando deram a primeira amostra de sangue. Nos cinco anos seguintes, 34 contraíram o vírus antes de desenvolverem EM. No grupo controle, de 107 soldados que não tiveram EM, apenas metade dos participantes contraiu EBV durante o estudo. Isso significa que contrair EBV aumenta em 37% a chance de alguém desenvolver esclerose múltipla. Ou seja, provavelmente você não desenvolve EM se não tem EBV.
Nenhum dos outros vírus para os quais os soldados são regularmente testados mostraram alguma relação parecida. Mas qual é o mecanismo pelo qual o vírus causa a doença? Cientistas nunca ficam satisfeitos. Em janeiro de 2022, a Nature publicou um estudo de um grupo da Universidade de Stanford mostrou que os pacientes de esclerose múltipla fazem uma alta quantidade de anticorpos para uma proteína do EBV, a EBNA1, que tem um pedaço muito parecido com uma proteína de células do sistema nervoso. Assim, a resposta que alguns fazem contra o vírus causa o que chamamos de reação cruzada com o nosso organismo, causando a autoimunidade. Se isso for verdade, podemos desenhar uma vacina que evite esse anticorpo e foque a resposta protetora do indivíduo em proteínas exclusivas do vírus.
No Brasil, apenas 26% das crianças estão vacinadas. Parece que aqui escolhemos esperar as consequências.
Essa não é a primeira vez que um vírus assintomático é ligado a uma doença mortal. O HPV, vírus do papiloma humano, causa câncer de útero, de cabeça e de pescoço. Vacinando as crianças, evitamos que elas desenvolvam câncer. Neste ano, a incidência de SARS-CoV2 aumentou, em crianças americanas, de 40% para 75%. No Brasil, esse levantamento não foi feito. E apenas 26% das crianças estão vacinadas. Parece que aqui escolhemos esperar as consequências.