Caríssimo Dr. Carlos Chagas,
Garanto que o senhor jamais imaginou que um menino curioso da roça mineira iria não só descobrir uma doença nova, como se tornaria referência onipresente da ciência brasileira. O senhor, mesmo sem dinheiro, teve a oportunidade de conseguir estudar; dedicava-se apaixonadamente ao que fazia, e essa combinação é via de regra imbatível. Em 1902, quando se formou em Medicina pela UFRJ, o senhor era talvez o mais jovem especialista em malária. Por isso, o professor Miguel Couto lhe recomendou para o Dr. Oswaldo Cruz, que recém retornara do Instituto Pasteur. Cruz queria que o senhor o auxiliasse a montar a medicina experimental no Brasil, mas o senhor preferiu clinicar: achava não levar jeito para ser cientista. Impossível não sorrir ao pensar nisso, visto que seria indicado ao Prêmio Nobel ao menos quatro vezes.
A falta de apoio local nos empurra assustadoramente para trás. Mas não vamos desistir
Mas sua experiência era sempre requisitada pelas autoridades, e para juntar um dinheirinho a mais valia a pena aceitar as campanhas de saneamento Brasil adentro. A malária devastava comunidades em Santos, e lá ia o senhor. A Baixada Fluminense sofria, e nova campanha era iniciada. Mas aquela do Rio São Francisco foi especial, né? Porque, além de malária, muitos morriam de uma doença estranha. Imagino o senhor fazendo aquela primeira autopsia. Será que, percebendo tanto dano cardíaco, ali mesmo o senhor já intuiu que algo estava para mudar? Será que, dias mais tarde, no acampamento da estrada de ferro, ao lhe mostrarem aquele inseto desconhecido, que os locais chamavam de barbeiro, o senhor achou que os dois fatos estavam relacionados? Imagino a emoção ao juntar as peças do quebra-cabeça: identificar o parasita no intestino do inseto, depois num gambá, depois em uma menina, fechando e depois descrevendo o ciclo da doença – que hoje tem o seu nome. Louros internacionais, prêmios e reconhecimento por colegas como Koch e Golgi. Nada disso o impediu de se embrenhar pela Amazônia, descrever tantas outras espécies de insetos, e mesmo identificar um novo fungo, o Pneumocystis, cuja importância seria dé- cadas mais tarde associada a patologias como a do HIV.
Ninguém entende por que o senhor não ganhou o Nobel – especialmente em 1921, ano em que ninguém ganhou. Alguns dizem que faltou apoio no Brasil. Infelizmente, acredito. Não que isso o impedisse de encher alegremente sua casa de cientistas no fim de semana, como tantos de nós, discutindo madrugada adentro, seus filhos seguindo a mesma carreira. Naquele início de século, a tecnologia ainda não nos diferenciava tanto de outros países. Só que a falta de apoio local nos empurra assustadoramente para trás. Acessar a plataforma online que também leva o seu nome é inspirador. Não vamos desistir. Mas o Brasil precisa conhecer essas histórias. Só então, talvez, valorize e proteja o tesouro que é a curiosidade dos nossos meninos e meninas.