Escolhi os exemplos abaixo — duas perguntas feitas por colegas — para ajudar nosso leitor a se lembrar de que certas palavras podem ser escritas de duas maneiras diferentes, sem ofender o que se costuma denominar de ortografia vigente.
Pois o primeiro vem de Bogotá, de Petrona F., professora que ensina Português lá na terra de Garcia Márquez: "Senhor professor, gostaria muito que me desse argumentos para fazer meus alunos distinguirem as palavras escritas com B ou com V. Ocorre que em Espanhol essas duas letras têm som muito parecido e os hispanohablantes sempre encontram problemas com isso. Para dizer a verdade, eu gostaria de uma regrinha para ensinar a usar B ou V em Língua Portuguesa. Existe?".
Cara Petrona, infelizmente não existe a regra que procuras. Aliás, a alternância entre esses dois fonemas sempre esteve viva em nosso idioma. É um processo que já ocorria no Latim Vulgar e se transferiu para nossa língua, sendo ainda muito presente no Norte de Portugal, onde se ouve /binho/, /barrer/ e /bento/ onde nós dizemos vinho, varrer e vento. Um belo e curioso exemplo pode ser encontrado numa das redondilhas de Camões, em que ele escreve bívora no lugar de víbora.
O mesmo fato também é bem conhecido no Brasil, onde produz diversas variantes já consagradas tanto na fala quanto na escrita: assobiar ou assoviar, piaba ou piava, taberna ou taverna, bergamota ou vergamota, verruga ou berruga, entre muitas outras. Os dicionários, como é sua obrigação, registram sempre ambas as formas, embora indiquem sempre qual das duas preferem (eu, por exemplo, votaria em assobiar, piava, taverna, bergamota e verruga, mas são escolhas pessoais que o sistema admite).
O segundo vem de Denise Q., de Maringá, que leciona Português e Literatura numa escola estadual: "Professor, ao trabalhar com nossos poetas do Romantismo, deparei com grafias no mínimo curiosas. A primeira foi de Castro Alves, que escreve doirada em vez de dourada; a segunda foi de Gonçalves Dias, que sempre usa frecha em vez de flecha. Como é que explico isso aos meus alunos? Seriam casos de licença poética?".
Prezada Denise, aconselho-te a deixar essa tal de "licença poética" escondida lá no fundo do baú. Esse conceito caiu em desuso, assim como os poetas que com ele justificavam seus tropeços em versificação. O problema aqui é linguístico, não literário: estamos diante de variantes perfeitamente legítimas de um mesmo vocábulo, consagradas nas gramáticas e nos dicionários. Embora a forma atualmente preferida seja flecha, há dezenas de exemplos, na literatura, do emprego de frecha (com seus filhotes, é claro — frechar, frechado, frecheiro, frechinha, etc.). Em pleno Indianismo, Gonçalves Dias, em Os Timbiras, escreve "Sempre o arco na mão, sempre embebida/ Na corda tesa a frecha equilibrada" — e quase um século depois nosso Érico Veríssimo, no romance O Resto é Silêncio, diz que "Uma andorinha pousou na frecha do cata-vento do torreão". Hoje o seu emprego é raríssimo, mas sua presença na tradição literária mais do que justifica sua menção na sala de aula. Mais ou menos similar é a variante aluguer para aluguel; há advogados que ainda usam o plural alugueres com a mesma satisfação secreta com que fazem brilhar o rubi de seu anel de grau. Errado não está, mas...
Já o exemplo de Castro Alves ilustra um grupo mais robusto de variantes: a alternância entre os ditongos OU e OI, como em touro ou toiro, tesouro ou tesoiro, noute ou noite, dous ou dois. No introito de seu O Navio Negreiro, Castro Alves escreve: "’Stamos em pleno mar.../ Doudo no espaço/ Brinca o luar — doirada borboleta/E as vagas após ele correm...cansam /Como turba de infantes inquieta!". Hoje ele talvez escrevesse "doido no espaço" e "dourada borboleta", mas essas variantes, mais modernas, não seduziram seu ouvido de poeta oitocentista. Machado, que também tinha uma queda maior pelo ditongo OU (noute, dous, etc.), escreve no conto A Mulher de Preto: "Meneses, que a amava doudamente, e que era amado com igual delírio".
Na evolução do idioma, esta última alternância, como um Sonrisal, foi pouco a pouco perdendo sua efervescência, deixando praticamente imóvel a água do copo, pois quase não há mais aquela hesitação de antanho: no Brasil, é tesouro, touro, dourado, de um lado, e dois, noite e coisa do outro — e pronto! O último dos moicanos, o último par em que ainda se observam bem vivas as duas variantes é louro versus loiro — embora uma rápida passada pelo Google já aponte uma tendência que parece inexorável: 15 milhões de ocorrências de loura para mais de 170 milhões de ocorrências para loira.