Aconteceu na semana passada, num aniversário infantil, daqueles à moda antiga: no canto prudentemente reservado aos pais das crianças, conversávamos gravemente sobre as loucuras do Putin e a qualidade excepcional do molho do cachorrinho quente quando minha filha veio me procurar, esbaforida. Enquanto tentava retomar o fôlego através da máscara, ela me estendeu um videogame portátil de um modelo que eu nunca tinha visto. "Bugou, pai. O Enzo me emprestou. Conserta?". Sopesei o elegante dispositivo (é assim que chamam?), uma pequena joia japonesa que devia custar mais do que a minha TV da sala, e tratei de confessar que eu não saberia nem ligá-lo, quanto mais consertá-lo. "Este é novo demais para mim, filha". Ela, que felizmente só tem oito anos e aquela imensa capacidade de absorver as decepções, disse um "Tá bom" e, assim como ela veio, correndo, assim ela voltou para o meio da algazarra.
É evidente que não passaram dez segundos sem que um dos meus parceiros viesse com aquele inevitável lero-lero sobre a triste decadência da língua portuguesa. "Bugar? Mas isso nem está no dicionário!", disse ele, olhando obliquamente para mim, assim como quem risca o chão com a faca para começar uma briga. "Não, ainda não", respondi com a fleuma necessária. É claro que eu me senti intimado, mas resolvi deixar o desafio para depois. Argumentei, com razão, que a cerveja estava na temperatura certa e aquele molho era quase igual ao da minha mãe, e que eu preferia me dedicar àquelas preciosidades em vez de caceteá-los com uma longa explicação, que eu daria, sem falta, na minha próxima coluna das quintas-feiras — esta aqui, para ser mais preciso.
Pois então vejamos. Vamos imaginar um brasileiro adulto, que completou 40 anos no dia em que D. Pedro I proclamou nossa independência, em 1822 — há duzentos anos, portanto. Vamos acrescentar um ingrediente fantástico à nossa história: uma tromba d'água se forma na baía de Guanabara e apanha nosso amigo em seu torvelinho, levando-o pelos ares e depositando-o de volta, no mesmo local, agora em 2022. Com dois séculos de diferença, o vocabulário que ele tem será bem menor do que o nosso, mas, dependendo da área envolvida, isso não o impedirá de entender várias expressões que empregamos usualmente.
No seu tempo, o meio de transporte mais importante era o navio; por isso, vai entender se eu disser que "O grupo precisa de um novo chefe que assuma o leme das operações", "Os planos dele naufragaram" ou "os negócios vão de vento em popa", pois são metáforas usuais retiradas da linguagem náutica. Como um dos passatempos mais frequentes dele e de seus amigos eram os jogos de carta, não terá dificuldade alguma em entender coisas como "Ele e seu irmão são do mesmo naipe", "Resolvi botar as cartas na mesa na reunião de amanhã", "Acho que ele guarda uma carta na manga", "Ela nunca mostra o jogo comigo", "Fulano é uma carta fora do baralho", "Vamos descartar a primeira hipótese", "Acordou com a visão embaralhada" — exemplos das inúmeras metáforas retiradas dos jogos de cartas.
Agora, por razões exatamente contrárias, ele não teria a menor noção do que querem dizer frases banais como "Puxei o freio de mão naquele negócio", "A candidatura dele está derrapando perigosamente", "As tratativas na Ucrânia deram marcha a ré" — porque ele nunca ouviu falar de um automóvel. Nem "Ele queria casar com ela, mas ela o pôs para escanteio", "Quase acertou; a resposta dele bateu na trave", "Aquele discurso mal preparado foi a maior bola fora", "Não leve a sério o que ele diz, porque sempre joga para a torcida", "Ela terminou o namoro porque descobriu que era apenas a regra 3"— porque não conhecia o futebol. Nem "Quase perco tudo; fui salvo pelo gongo", "A notícia me deixou nocauteado", "Ele jogou a toalha: não vai mais competir"— porque o boxe ainda não existia. Nem entenderia a minha avó, quando dizia que era para eu parar de chorar, porque estava fazendo fita, ou que, depois de formado, eu passara a ter um imenso cartaz com as filhas da vizinha — porque são palavras que o cinema trouxe para nós no séc. 20.
A esta altura, meus parceiros do aniversário já terão compreendido, junto com meus prezados leitores, como funciona o moinho das palavras. A informática, as mídias sociais, a internet e tudo mais que já andam cozinhando por aí não vão passar por nós sem deixar suas marcas perenes no idioma. Na virada do milênio, só se falava do bug que iria dar dor de barriga em todos os computadores. A terrível ameaça não passava disso mesmo — um bug (em breve, um bugue), um simples inseto, mas foi aninhar-se na corrente sanguínea da nossa língua e agora, vinte anos depois, faz nascer o verbo bugar, popularíssimo nessa geração que se prepara para ser nosso futuro. É assim que gira a roda do mundo; aceitem, que dói menos.