Como ainda tenho saudades da velha correspondência por carta, esta pergunta já me deixou contente pelo modo como chegou até aqui — em duas folhas de papel, dentro de um envelope com meu nome em letra traçada com pulso firme, a la antiga, e entregue, como o autor expressamente indicou no endereçamento, em mão própria — e, posso garantir, muito apropriada até, porque o remetente, que é ninguém menos que o nosso pintor Eduardo Vieira da Cunha, elegeu como fiel mensageiro o seu irmão, o meu amigo Liberato.
Eduardo, como ele fez a gentileza de lembrar, foi meu aluno no Colégio Anchieta, quando eu, quase com a mesma idade que ele e seus colegas, passava as aulas de Literatura contando as aventuras de Ulisses, de Percival, de Lazarillo de Tormes e de Julien Sorel. Todo esse tempo ele tem acompanhado o meu trabalho, como eu o dele, mas só agora entramos em contato por causa de um autor que tanto ele quanto eu admiramos muito, o Sergio Faraco (que vai entrar nesta história como Pilatos no Credo – alô, revisão: não é Pilates).
A cisma é a grafia do nome Pigmalião, aquele famoso escultor mitológico que ficou tão obcecado pela estátua que esculpia que Afrodite se apiedou dele e a transformou numa mulher de verdade. "Eu sempre escrevi Pigmalião com "i". Acontece que li no excelente As Noivas Fantasmas, um conto de nosso amigo Sergio Faraco, com o título de Mulheres Especiais, onde várias vezes aparece o nome Pigmaleão, assim, escrito com "e". Quase caí para trás como se tivesse visto um fantasma. Só não fiquei branco porque sei que Faraco é um ourives da palavra, ele deve ter lá sua razão. Por isso recorro à vossa sabedoria: continuo escrevendo Pigmalião, ou devo passar a tratá-lo como Pigmaleão?".
Caro Eduardo, tua pergunta nos leva à borda um banhado — aliás, o mais traiçoeiro banhado de nossa ortografia. Se eu perguntasse aos leitores qual é, na opinião deles, o ponto mais cabuloso, mais difícil, mais perigoso de nossa escrita, tenho certeza de que haveria uma disputa acirrada entre o emprego do S e do Z, do Ç e dos SS, do J e do G, ou quiçá do misterioso SC. Fosse eu a votar, no entanto, a resposta seria bem outra: nosso terreno minado será sempre a escolha entre o E e o I (e, em segundo lugar, entre o O e o U). Em outras palavras, é muito mais fácil dominar o emprego das consoantes do que o emprego dessas vogais, e isso por um motivo muito simples e incontornável: a letra E (friso: letra, a que fica entre o W e o R no nosso teclado) é usada, na grafia, ora para representar o som /e/ (som, friso de novo), ora o som /i/. Afinal, temos muito mais sons do que letras, e estas precisam, muitas vezes, ser polivalentes (como o C em céu e casa, o G em gelo e gato, o X com seus quatro valores, como em xarope, exato, máximo e nexo, e assim por diante). Se pudéssemos reclamar da Dona Ortografia, ela daria de ombros e diria: é o que temos; eu faço o que posso.
Ora, como na pronúncia quase unânime do Brasil o som /i/ muitas vezes é representado pela letra E (menino, cidade, doce, etc.), a confusão é inevitável. Só para dar uma ideia da profundidade deste atoleiro, vou listar uma dúzia de palavras em que, independentemente de estarem corretas ou não, vou empregar E nas seis primeiras e I nas outras seis, e pedir ao leitor que as examine e conte, mentalmente, quantos erros encontrou (não vale ir ao dicionário): lacrimogêneo, empecilho, irrequieto, encorpado, grandessíssimo e embutido + intitulado, míssil, aborígine, pontiagudo, silvícola e pampiano.
Mesmo os que obtiverem nota máxima neste teste hão de convir que é surpreendente que não haja nenhuma errada entre as doze. Muitos, ao saberem que as doze estão corretas, irão correndo conferir no dicionário, o que, como as caminhadas, sempre será um saudável exercício. Não admira, portanto, que ocorram várias disputas de grafias divergentes, algumas, inclusive, muito atuais, como entubar e intubar, que continuam em discussão (eu uso a primeira, como faz o Houaiss, mas não condeno os que tentam defender a segunda). A disputa entre Pireneus e Pirineus ainda está viva no Brasil, assim como Casimiro e Casemiro, Eurípides e Eurípedes ou Filipe e Felipe (apesar das Filípicas e das Filipinas...) — em todas elas eu recomendo a primeira forma, com base na etimologia e na tradição, mas sei que essa duplas vão conviver por muito tempo.
Pois foi aqui que entrou nosso Pigmalião, caro Eduardo. Como bem dizes, e como já tive várias vezes a oportunidade de verificar pessoalmente, o Faraco é um ourives da palavra, literalmente obsessivo com aquilo que, afinal, é a matéria prima de sua arte, e não ia deixar passar uma forma que já estivesse condenada. As duas grafias estão aí, bem vivas, inclusive, habitando, como a onça e o veado da lenda, o mesmo verbete da Wikipedia, que as mistura alegremente. A própria L&PM, editora de seus livros, publicou a peça do Bernard Shaw com uma vistosa capa que ostenta o Pigmaleão com E — o que sugere, também, que o conselho de revisores privilegie esta forma alternativa e a adote em todas as suas publicações.