Só hoje aprendi, para minha total surpresa, que há mais maneiras de enviar mensagens de voz do que sonhava a minha vã filosofia. Digo isso porque a pergunta de hoje, em vez de vir pelo e-mail de sempre, veio pelo Instagram, que eu nem sabia que falava! O autor é um jovem que vi crescer junto com meus filhos, e, conhecendo-o muito bem, me apresso em responder antes que passe este súbito interesse pelo nosso idioma. Transcrevo sua mensagem da forma mais fiel possível:
"Oiê! Desculpa eu falar pelo Insta, mas o pai está aqui do meu lado e não quis me dar teu telefone, para não incomodar. Mas é que foi agora mesmo que tive esta dúvida e se eu não perguntar logo, vou esquecer. Estou no aeroporto lendo uma revista de surfe e aqui fala que a água das nossas praias é mais fria por causa de uma corrente marítima que vem do Polo Sul. Eu acho que no colégio sempre falavam em corrente marinha, mas agora não sei mais nada. É tudo a mesma coisa? Diz aí, tio!".
Claro que não é a mesma coisa. Nossa língua é um organismo vivo e, como tal, jamais duplica inutilmente os seus esforços. Se ocorrer (e vive ocorrendo) que se derivem duas palavras a partir de um mesmo radical, elas não podem compartilhar o mesmo papel, e a questão certamente vai ter um desses dois desenlaces: (1) ou uma delas é aposentada e vai para o limbo dos dicionários, ou (2) elas se especializam, assumindo nuanças diferentes de significado.
Assim aconteceu, como já vimos aqui, com doloroso e dolorido. São dois adjetivos irmãos que, por ser filhos do mesmo radical primitivo, dolor ("dor", em Latim), vivem sendo trocados um pelo outro. A língua, no entanto, parece que já traçou caminhos diferentes para eles: doloroso é qualquer coisa que possa provocar dor: uma vacina dolorosa (por oposição a uma vacina indolor), uma experiência dolorosa, um espetáculo doloroso. Dolorido, por sua vez, é o que sente dor, é aquilo que está doendo: um braço dolorido, a alma dolorida, a voz dolorida.
A mesma coisa ocorreu com marinho e marítimo. Ambos são adjetivos referentes ao mar, mas mantêm entre si uma diferença básica de uso. Para começar, marinho é o que nasce no mar, que é natural do mar, que pertence ao ecossistema do mar. É por isso que falamos em aves marinhas, em ondas marinhas, na brisa marinha, no azul marinho, nos cavalos, leões, lobos e elefantes marinhos, chegando até aos deuses e aos monstros marinhos.
Já o adjetivo marítimo designava, inicialmente, apenas o que está junto ao mar — ou, como dizia Bluteau, que é um dicionarista do séc. 18, "as cidades, províncias e terras pouco distantes do mar". Era usado, inclusive, o substantivo marítimo como sinônimo de costa, como faz inúmeras vezes João de Barros:
"Capítulo em que se descreve o Mar Roxo e todas as povoações e portos do marítimo dele" (Mar Roxo=Mar Vermelho). Depois, seu significado foi ampliado para abarcar também o que foi posto no mar pelo homem, o que o homem realiza no mar, e daí as navegações marítimas, as viagens marítimas, as rotas marítimas, as batalhas marítimas, os portos marítimos.
A diferença no emprego me parece bem clara. Aliás, um livro que descreva a vida marinha é bem diferente de um que descreva a vida marítima, e Bluteau, quando relata, credulamente, que "na costa de Portugal se viram antigamente homens marinhos e mulheres marinhas", não estava falando de marujos de carne e osso mas de personagens mitológicos da família dos tritões. Ora, se estudamos os vulcões marinhos, o relevo marinho, o solo marinho, as tempestades marinhas, não vejo por que não acrescentar a esta lista as correntes marinhas. É isso aí, brother.