Já devo ter maçado meus leitores com a surrada advertência de que, tanto na etimologia como na vida, nem tudo é o que parece. Neste Natal, no entanto, uma consulta transatlântica veio contribuir para nosso baú de exemplos. Olegário Pessela, professor de Luanda, em Angola, empacou na palavra hebética, que encontrou no romance A Casa Grande De Romarigães, de Aquilino Ribeiro. "É um grande estilista e usa um vocabulário riquíssimo, razão pela qual estou a lê-lo sempre com o dicionário aberto no ecrã do computador. Desta feita, porém, pouco adiantou, porque, ao falar de Maria Carantonha, uma das velhas tias do livro, o autor diz que ela regressou "à sua alcova de hebética". Ora, o dicionário Priberam define o termo como "relativo à adolescência"; a lição é confirmada pelo Caldas Aulete, outro dicionário em linha a que recorro frequentemente. Se pudesse, gostaria de saber vossa opinião a respeito disso".
Pois, prezado Olegário, vejo-me na desagradável obrigação de dizer que o grande Aquilino Ribeiro às vezes também pode "trocar alhos por bugalhos" (desculpe o cacófato, mas é irresistível). Por caracterizar a personagem Maria Carantonha como uma pessoa solitária, reclusa, que raramente saía "do nirvana em que vegetava", aposto que ele estava pensando em hebetada, palavra perigosamente semelhante a hebética, mas ligada ao conceito de hebetude (cá entre nós, duas famílias pouco frequentadas pelos mortais).
Hebetude provém do radical latino hebes, "rombudo, sem ponta ou fio", usada pelos romanos, por exemplo, para dizer que uma faca ou uma lâmina qualquer tinha perdido o corte — e também para designar uma pessoa aparvalhada, seguindo a universal metáfora que associa, de um lado, a inteligência ao fio e à ponta, e a estultice à falta deles. Comentários agudos ou aguçados, palavras afiadas, réplicas cortantes encontram sua contrapartida nos raciocínios obtusos (definidos no dicionário como "rombudos, sem ponta" e também "falto de inteligência; rude, bronco").
O dicionário Houaiss define hebetude como "entorpecimento, letargia, torpor". Um tratado de Direito Penal fala do "estado de hebetude e embrutecimento provocado pela droga"; Freud, em Neurose e Psicose, afirma: "Sabemos que outras formas de psicose, as esquizofrenias, tendem a acabar em uma hebetude afetiva — isto é, na perda de todo o interesse pelo mundo exterior". E Rafael Bluteau, no seu dicionário do séc. 18, diz que o ópio, em certas partes da Ásia, era usado para enganar a fome, pois "os Malabares o tomam para hebetar, e em certo modo adormentar, o apetite, ou vontade de comer". Aqui está a Maria Carantonha.
Por outro lado (e um lado bem distante), hebético é um daqueles vocábulos relacionados com a mitologia grega — mais precisamente com Hebe, a filha de Zeus e de Hera, considerada a protetora da juventude (Hebe era conhecida como Juventa na mitologia romana). Esta divindade, pouco mencionada hoje em dia, serviu a mesa dos deuses até que Zeus a substituiu por Ganimedes, por razões que o decoro impede de comentar aqui; ela será dada em casamento a Hércules, quando o herói deixa de ser mortal e passa a viver no Olimpo. Dela se originaram vários vocábulos científicos, como hebefilia (para alguns, distinta da pedofilia porque o alvo são menores que já chegaram à puberdade), hebefrenia (distúrbio mental típico de adolescentes) e os nossos modernos hebiatras, médicos que se especializam no tratamento de adolescentes.