O leitor Jorge Luiz S. (não mencionou a cidade) vem fazer um apelo quase dramático:
“Caro Professor, lamento abusar da sua paciência, mas uma dúvida consome minhas noites. O verbo relevar, bem como seus cognatos (relevante, relevância, etc.), se apresenta com dois valores distintos. Às vezes indica destaque, importância: “É de suma relevância que se aprove a reforma da Previdência”; outras vezes, ao contrário, sugere perdão ou pouca importância: “Deus há de relevar meus pecados”. Como interpretar isso, sem dar um nó na minha, diga-se, relevante saúde mental?”.
É natural que estranhes, meu caro Jorge, este comportamento do verbo relevar. Que as palavras tenham a propriedade de ganhar novos sentidos, isso ninguém desconhece; agora, que um mesmo vocábulo exprima significados contraditórios ou opostos, isso é muito raro – raríssimo, posso assegurar. Não é um fenômeno exclusivo do Português. Em Inglês, por exemplo, exatamente como em nosso idioma, sanction (sanção) pode significar tanto “aprovação” quanto “penalidade”: “A lei aguarda a sanção presidencial” versus “O Brasil pode sofrer sanção moral se descumprir o acordo”.
Não é um fenômeno exclusivo do Português. Em Inglês, por exemplo, exatamente como em nosso idioma, sanction (sanção) pode significar tanto ‘aprovação’ quanto ‘penalidade’.
Como chamar esses vocábulos que carregam sentidos opostos? Não me parece uma questão essencial; dado o pequeno número de exemplos existentes, a Linguística acertadamente não se preocupou com isso. Já sugeriram chamá-los de antagônimos, como usamos no título da coluna. Outros as denominam de palavras-Jano (só para lembrar, Jano é um dos poucos deuses que Roma não importou da mitologia grega. Ele é bifronte, ou seja, é sempre representado com duas faces que olham em direções opostas – uma voltada para o passado, a outra voltada para o futuro. Por ser a divindade que preside o fim de um ano e o início do próximo, o mês dedicado a ele foi chamado de janeiro). Não creio que esta metáfora mitológica exprima adequadamente a ambiguidade de palavras como relevar. Para mim, elas seriam mais como o Doutor Jekyll, da obra The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde, conhecida aqui no Brasil com o enganoso título de O Médico e o Monstro. Neste livro de Robert Louis Stevenson, o doutor, sob efeito de uma poção que ele próprio criou, deixa aflorar temporariamente o seu lado sombrio e reprimido, o Mister Hyde que mora dentro dele. Se por um lado esta comparação me parece mais justa, sou obrigado a confessar que palavra-Dr. Jeckyll seria ainda pior que palavra-Jano...
De qualquer forma, relevar não está sozinho. Há mais alguns exemplos, além do já mencionado sancionar. O termo handicap, que no Inglês significa “desvantagem” (os handicapped são os que chamamos de deficientes), entrou em nossos dicionários com dois significados: “(1) vantagem; (2) desvantagem”! Durante muito tempo, hóspede designou tanto aquele que era recebido numa casa ou numa hospedaria, quanto aquele que fornecia a hospedagem (que hoje preferimos chamar de anfitrião ou hospedeiro). Aparente pode ser “aquilo que se vê” ou “o que parece, mas não é” – todos concordamos que a frase “O talento dele é aparente” é ambígua. O verbo alugar serve para os dois lados da transação: “Eu alugava um terreno na Av. Assis Brasil” – eu pagava ou recebia aluguel? E o teu relevar? Como vamos entender algo como “Há vários aspectos que devemos relevar”? Como no traiçoeiro handicap, só o contexto vai decidir de que lado devemos montar neste cavalo.