Não é a primeira vez que utilizam esta coluna para desempatar uma discussão ou uma aposta, mas nunca tinha recebido uma consulta a quatro mãos, em que marido e mulher expõem, na mesma mensagem, as suas opiniões conflitantes (por prudência e discrição, vou chamá-los de João e Maria). Diz João: "Professor Moreno, gostaria de saber se é correto o nome de arroz de leite, sinônimo de arroz-doce, típica sobremesa rio-grandense. Minha mulher insiste que está errado. Esta grafia consta nos dicionários, ao contrário da forma que ela defende, arroz com leite". Retruca Maria: "Eu sou do interior e meu marido é de Porto Alegre. A família dele acha estranho eu falar arroz com leite. Eu argumento que de leite não se faz arroz; pode-se fazer um doce de leite, uma rapadurinha de leite, mas nunca arroz — mas eles dizem que é o nome do doce e que, por isso, pode".
Meus caros João e Maria: tratem de fazer as pazes, porque os dois têm razão. O tradicional arroz-doce pode ser chamado tanto de arroz de leite quanto de arroz com leite. Não tentem encontrar uma ordem ali onde ela inexiste: infelizmente o uso da preposição na denominação dos pratos de nossa culinária não segue a estrutura-padrão de nossos sintagmas. Entendo a posição da Maria: o arroz-doce é feito com leite, e não de leite. No entanto, uma pesquisa detalhada em livros de culinária consagrados me fez suspeitar que não é tão simples assim. Encontrei feijão de azeite, feijão de alho, cocada de ovos, arroz de polvo, arroz de marisco, arroz de frango, arroz de alho, arroz de coco (Luís Câmara Cascudo), arroz de pequi, arroz de leite (Gilberto Freyre) — em todos eles, aposto que a Maria substituiria o de pelo com.
Em alguns cardápios, inclusive, vi distinguirem arroz com leite, prato salgado em que o arroz é cozido no leite e não na água, do arroz de leite, incluído entre as sobremesas. Em outros, no entanto, o próprio arroz de leite aparece como salgado: um típico restaurante do Rio Grande do Norte oferece à gula dos fregueses vários pratos da cozinha regional do Seridó, entre eles rabada de boi, guiné torrado, buchada e carne-de-sol com arroz de leite. Deu para perceber? Neste caso, não existe um padrão sedimentado quanto ao emprego do com ou do de.
E tem mais: o arroz-doce, embora seja uma sobremesa popular em nosso estado, foi trazido para cá pelos portugueses, os quais, por sua vez, herdaram-no do mundo árabe (ele aparece nas 1001 Noites, por exemplo). Isso me foi confirmado por um velho amigo de Rio Grande, orgulhoso de sua descendência moura, que acrescentou um detalhe assaz interessante para a nossa discussão: segundo ele, este doce comparecia com frequência nas festas de sua infância e era denominado de ruz ib haleeb — que ele traduziu como arroz no leite. Viram só? A preposição em também quer entrar na dança: pato no tucupi, camarão no alho e óleo, legumes na manteiga... Não, não chamamos o doce de arroz no leite, mas nada impediria que esta tivesse sido a denominação adotada por nosso idioma. Querem um conselho? Deixem isso de lado, esqueçam esta discussão e comemorem em torno de um belo prato de arroz de leite (ou com leite) morninho, com uma canelinha por cima, o fato de ambos terem razão.