Na coluna anterior, que versava sobre os nomes alternativos do arroz-doce, mencionei um amigo de "descendência moura", expressão que despertou a estranheza da leitora Marta G. Diz ela: "Como tantos gaúchos, sou leitora assídua e grande apreciadora de sua coluna na ZH. Hoje fui surpreendida ao ler descendência onde eu utilizaria ascendência. Seguidamente encontro essa forma em livros e jornais, o que sempre me pareceu um uso equivocado da palavra. Tenho por hobby escrever livretos (de circulação restrita) sobre a história dos meus ascendentes, que pesquiso em arquivos públicos e outras fontes. Vem daí meu interesse em aprender o uso correto dessas palavras".
Prezada Marta: como ocorre com frequência na relação entre mim e os leitores, a tua observação chamou-me a atenção sobre um detalhe sobre o qual nunca tinha pensado seriamente: a oposição entre ascendência e descendência é claramente de direções opostas no eixo do tempo (meus ascendentes vieram antes, meus descendentes vieram depois); por que cargas d'água, então, tanta gente (e eu no meio) anda usando descendência? Se imaginarmos que as palavras que cada um conhece (o nosso vocabulário) são como livros arrumados numa biblioteca de longuíssimas estantes, por que fazemos essa escolha que parece ir contra a lógica?
Só posso ver uma razão: há áreas em que os dois vocábulos jamais poderão ser intercambiados, é verdade, mas já existe uma faixa gris em que os dois terminaram se superpondo. Os limites são bem claros em frases como "O filho do Correa pertence a uma família de sangue azul, ao passo que Lucila não tem ascendência ilustre" (Franklin Távora) e "Destes sete marqueses nasceu generosa descendência, que enriqueceu a Itália" (Francisco Rodrigues Lobo). Quem faz pesquisa de genealogia, por exemplo, jamais trocaria um vocábulo pelo outro.
Ocorre, porém, que o termo descendência passou a ser usado também como sinônimo de linhagem (dou exemplos anteriores ao séc. 20, para não parecer modernices): "Que outra coisa somos senão irmãos uns dos outros? Todos trazemos a descendência e a origem da semente celestial" (Amador Arrais -1589); "A família, que era de boa e honrada descendência, podia dizer-se pobre" (Almeida Garret - 1846); "Era ainda sertanejo da gema; sertanejo por descendência, por nascimento e por criação" (Alencar - 1875); "Darwin é ... o grande filósofo e naturalista que primeiro estabeleceu a teoria da descendência do homem, e declarou-o nascido diretamente do macaco" (Eça de Queirós - 1877). Esta parece ser a escolha predominante em contextos em que o foco não é a genealogia, mas o grupo humano a que se pertence; não é por acaso que na eterna luta do Google descendência africana venha obtendo uma crescente vantagem sobre ascendência africana.
Quem faz pesquisa de genealogia, por exemplo, jamais trocaria um vocábulo pelo outro. Ocorre, porém, que o termo descendência passou a ser usado também como sinônimo de linhagem.
Esse fenômeno em que o significado de um termo se espraia sobre o de outro, como ao sabor de uma maré irrefreável, foi mais ou menos o que aconteceu com temporão. Esta palavra (temporanus, no Latim) significava originalmente "antes do tempo". Nossos clássicos falam em figo temporão, uvas temporãs; na Bíblia traduzida por João Ferreira de Almeida, encontramos em Jeremias, 5:24: "Temamos, agora, ao Senhor, nosso Deus, que dá chuva, a temporã e a tardia, a seu tempo".
À falta de um termo que significasse aquilo que acontece fora do seu tempo próprio, os falantes passaram a usar temporão tanto para o cedo como para o tarde. Enquanto os textos médicos antes do séc. 20 usavam temporão como sinônimo de prematuro, hoje se entende filho temporão como aquele que nasce depois que seus irmãos já estão crescidos. A fusão está consumada, concordo, mas registro, para que não se esqueça, que o Espanhol temprano ("cedo") deu origem à uva tempranillo, bem conhecida dos vinhateiros do Prata, assim chamada porque amadurece antes das outras.