Nem sempre, ou quase nunca, um discurso de posse na Academia Brasileira de Letras provoca algum tipo de expectativa. A coisa muda um pouco de figura quando o novo imortal, além de fazer História ao ser admitido na casa, tornou-se conhecido exatamente pela repercussão de um discurso.
É difícil evocar qualquer outra ocasião na história do Brasil em que o impacto estético de um pronunciamento tenha comunicado tão bem uma ideia, e chamado tanta atenção para uma causa, quanto o dia em que Ailton Krenak ocupou a tribuna da Assembleia Constituinte, em setembro de 1987, para lembrar os deputados encarregados de escrever a nova Constituição de que existia um jeito de viver e de pensar nas comunidades indígenas que era legítimo e devia ser respeitado.
Mais velho, mais relaxado e falando para uma plateia de admiradores, Krenak é outro, mas continua o mesmo – como o Brasil. Em seu discurso de posse, no último dia 5 de abril, o primeiro imortal indígena em 127 anos de ABL respeitou os rituais da casa, mas não ignorou a fricção entre a cultura letrada da língua portuguesa e os 305 povos que ele passou a representar na instituição.
Vestiu o fardão, mas manteve a bandana Kaxinawá que o identifica. Homenageou o patrono e os antigos ocupantes da cadeira número 5 (entre eles, Rachel de Queiroz, a primeira mulher a ingressar na Academia, em 1977), como manda o protocolo, mas não abriu mão do improviso e do bom humor. (Poderia ter feito alguma referência irônica ao poema O Elixir do Pajé, publicado pelo patrono Bernardo Guimarães em 1875, mesmo ano de A Escrava Isaura, seu livro mais conhecido, mas basta ler os dois primeiros versos para entender por que a citação talvez não pegasse muito bem, mesmo diante de uma plateia tão selecionada.)
Ailton Krenak tem 15 livros publicados e é traduzido em vários países e idiomas. Sua obra mais conhecida, Ideias para adiar o fim do mundo, de 2019, contribuiu para que ele recebesse o Troféu Juca Pato de intelectual do ano em 2020. Ainda assim, o novo imortal não se considera um escritor. Krenak habita o “oceano da oralidade”, que ele também fez questão de evocar no discurso de posse: “Todo mundo que escreve livros incríveis escutou histórias de alguém que não escreveu livros”. Muitas dessas histórias, na forma de conversas, entrevistas e conferências, estão disponíveis no YouTube (inclusive os dois discursos, o de 1987 e o de 2024), e o canal Selvagem – Ciclo de estudos sobre a vida vem selecionando e organizando o acervo oral do autor.
Em 2024, essa “biblioteca que fala e não pede silêncio”, na definição do próprio Krenak, que o Brasil nem sempre soube ou quis escutar, é o que boa parte do mundo está interessada em ouvir.