Foi um daqueles casos de amor ao primeiro acorde. George Gershwin (1898 -1937) tinha apenas 25 anos e já era famoso como compositor popular quando recebeu uma encomenda, em cima do laço, para compor uma peça musical que misturasse elementos do jazz e da música clássica. O espetáculo coletivo, intitulado Um Experimento em Música Moderna, seria apresentado no Aeolian Hall, em Nova York, no dia 12 de fevereiro de 1924. A ideia era mostrar para um público pouco acostumado ao jazz, na época ainda associado à vida boêmia, que o novo ritmo merecia ser levado a sério pela elite branca da cidade.
No início, nada deu certo. O sistema de ventilação do teatro não estava funcionando, e as músicas selecionadas menos ainda. Parte da plateia já começava a se retirar quando Gershwin, a penúltima atração do programa, se posicionou ao piano, à frente da orquestra, e o inconfundível solo de clarinete que abre Rhapsody in Blue soou no teatro. Quinze minutos depois, a plateia estava aplaudindo de pé. O compositor genial que morreria antes de completar 40 anos e a música que ele compôs em poucos dias acabavam de entrar para a história.
Cem anos depois, Gershwin e Rhapsody in Blue são tratados nos Estados Unidos como grandes tesouros nacionais. Em 1984, na abertura das Olimpíadas de Los Angeles, 84 pianistas tocaram juntos aquele que é considerado um hino não oficial do país, adotado pela companhia aérea United Airlines como jingle dos seus filmes publicitários. Muita gente, como eu, associa a música de Gershwin à abertura do filme Manhattan (1979), de Woody Allen – ou seja, pensa logo em Nova York. Rhapsody in Blue é um pouco Garota de Ipanema, um pouco Aquarela do Brasil, um pouco Bachianas Brasileiras.
Em 2024, os cem anos da apresentação no Aeolian Hall estão sendo comemorados com concertos, regravações, homenagens de todos os tipos – e alguma polêmica. Com o título “A pior obra-prima”, o pianista Ethan Iverson escreveu um artigo no New York Times acusando Rhapsody in Blue de ser “brega e caucasiana”, um “cheesecake” que “entupiu as artérias da música americana” ao mesmo tempo em que se apropriou de elementos da música negra. O linguista John McWhorter saiu em defesa de Gershwin, reconhecendo que a música é, pelos padrões modernos, um caso de apropriação cultural. Embora tenha feito isso com intenção artística sincera, o compositor adotou formas musicais negras e, como resultado, ganhou a fama e a fortuna que o racismo da época tornava impossível para os compositores negros americanos. Apesar disso, continua McWhorter, Rhapsody in Blue é “uma explosão de glória, linda e azul, um testemunho da magnífica miscigenação da cultura americana”.