Meu pai era um gurizote quando as águas do Guaíba avançaram sobre as ruas de Porto Alegre. Mais tarde, contando aos filhos pequenos sobre a enchente de 1941, era o olhar do menino que ditava o ritmo da narrativa. Quando o assunto vinha à tona, o pai nos falava das aulas suspensas, dos barquinhos atravessando a Borges de Medeiros, da farra da gurizada em meio à desorganização geral da rotina da cidade.
Talvez não fosse a intenção dele, mas a enchente ficou me parecendo um negócio extraordinário, no bom sentido, mais ou menos como o Zeppelin sobrevoando a Praça da Matriz (em 1934) ou Albert Camus dando palestra no Instituto de Artes (em 1949). O passado do lugar onde a gente nasceu é um pouco como a infância dos nossos pais: tão próximo que quase podemos visitar, tão longínquo quanto uma civilização extinta da qual nos restaram apenas alguns fragmentos.
Minha fantasia aventurosa sobre a enchente de 1941 não durou muito, obviamente. O que na infância havia me parecido espetacular, porque insólito, era na verdade um trauma, uma cicatriz em formato de muro na história da cidade. E não é difícil entender por quê. Mesmo quem nunca enfrentou a face mais terrível desse tipo de tragédia alcança a dimensão épica de uma enchente de grandes proporções. Basta uma goteira persistente ou um princípio de infiltração para qualquer um perceber que somos adversários risíveis na trajetória de um fio de água determinado. Com força para tornar poroso e instável o que nos parecia sólido e confiável, a inundação tem a carga simbólica dos nossos piores pesadelos.
Enquanto escrevo, vejo uma lancha vermelha cruzando as águas calmas do East River. Nunca morei tão perto assim de um rio, e a beleza da paisagem ainda me comove, todos os dias, quando acordo e abro as cortinas. Até onde é possível em uma cidade do tamanho de Nova York, é um panorama plácido, quase bucólico. Ainda assim, não devo ser a única moradora de Roosevelt Island que se pergunta se viver debruçada sobre um rio, mesmo no oitavo andar de um edifício, vai continuar sendo uma boa ideia por muito tempo.
Em 2023, explodiram no Google as buscas por expressões como “mobilidade climática” (mudanças causadas por desastres já ocorridos ou que levam em conta a segurança de um determinado local no caso de temperaturas e eventos naturais extremos) e “ansiedade climática” (o sentimento de angústia relacionado aos humores do clima). Ainda não nos tornamos insensíveis em relação às belezas da chuva, do rio e do mar – acho –, mas definitivamente estamos mais desconfiados.