Uma tem gente de mentira que parece de verdade. A outra tem gente de verdade que parece de mentira. Uma se passa no Rio de Janeiro que fazia a alma de Tom Jobim (e a nossa) cantar: praias e festas sem fim, Zona Sul e aquele feitiço sem farofa da malandragem carioca em sua versão mais amigável e perfumada. A outra tem como cenário os avessos do paraíso. Uma cidade loteada entre bandidos, condenada à violência e à desordem institucional desde os tempos de D. João VI.
As duas séries estrearam há pouco na Globoplay. Fim, ficção baseada no romance de Fernanda Torres, com direção de Andrucha Waddington e Daniela Thomas, chegou à plataforma no final de outubro. Vale o Escrito, série documental sobre a guerra entre banqueiros do jogo do bicho no Rio de Janeiro, com direção de Fellipe Awi, Ricardo Calil e Gian Carlo Bellotti, estreou no início de novembro. Ambas são golaços da Globo na produção de conteúdo para o streaming.
Fim conta a história de uma turma de amigos que se conhece no final dos anos 1960 e permanece mais ou menos unida até que a morte começa a bater na porta, décadas mais tarde. Idas e vindas no tempo sugerem que alguns membros da turma envelheceram mantendo uma espécie de coerência em relação à identidade da juventude: o sensato nunca perdeu o rumo, o controlador continua ditando regras para tudo, o maluco tornou-se ainda mais excêntrico. Mas há aqueles que parecem quase irreconhecíveis no final da vida – seja porque diferentes tipos de desvios implodiram as expectativas de quem parecia se encaminhar para um futuro promissor, seja porque alguns conseguem chegar à velhice a bordo de uma versão revista e melhorada, em paz com as perdas e as decepções inevitáveis. Quem já está vendo os amigos de juventude ficando mais velhos não vai ter dificuldade para reconhecer traços dos personagens em pessoas conhecidas – ou em si mesmo.
Os entrevistados de Vale o Escrito também parecem familiares, mas como personagens saídos de filmes de máfia, livros de realismo mágico e reality shows de famílias disfuncionais. Figuras como as gêmeas más Shanna e Tamara, filhas e netas de bicheiros, Capitão Guimarães, o homem que trocou o Exército pela contravenção (não sem antes posar de cidadão do bem durante a ditadura militar), e Piruinha, o bicheiro quase centenário que ainda está na ativa, emprestam um aspecto pitoresco a uma narrativa brutal de violência e corrupção.
Nada no documentário chega a surpreender muito o espectador – o que não impede que a realidade seja ainda pior do que a maioria das pessoas consegue imaginar. Cidade sangue quente, purgatório da beleza e do caos, o Rio de Janeiro continua desafiando a criatividade de qualquer roteirista.