O padre paulista Júlio Lancellotti alcançou dois pequenos milagres nos últimos meses. O primeiro foi chamar a atenção para um problema pouco discutido, apesar de estar à vista de todos: a crueldade de algumas estruturas projetadas para espantar moradores de rua de espaços públicos. Bancos de praça com divisórias desconfortáveis, pedras colocadas sob viadutos, pinos e grades pontiagudas sobre os peitoris de lojas e até sistemas automáticos que disparam alarmes sonoros, acendem luzes e lançam água sobre os visitantes indesejados são algumas das gambiarras urbanas que vinham sendo usadas para empurrar o problema da falta de moradia para baixo do tapete – ou, pelo menos, para outra vizinhança.
O segundo milagre foi a promulgação, no início deste ano, de uma lei que proíbe a chamada “arquitetura hostil”. Aprovada pela Câmara dos Deputados e pelo Senado, a Lei Padre Júlio Lancellotti entrou em vigor no último dia 11 de janeiro. Calçadas, praças e outros espaços, mesmo aqueles diante de prédios privados, estão proibidos, a partir de agora, de manter equipamentos cujo único objetivo é impedir que o local seja frequentado por moradores de rua.
Nos Estados Unidos, a arquitetura hostil também recebe críticas, especialmente em meio a uma crise de falta de moradia, mas a discussão nas últimas semanas tem sido sobre um outro tipo de gambiarra urbana, que talvez possa ser chamada de “música hostil”. Franquias da 7-Eleven, uma rede de lojas de conveniência com filiais espalhadas por todo o país, vêm usando ópera para dissuadir os sem-teto de buscarem abrigo perto de suas instalações. Simon Boccanegra, de Verdi, Don Giovanni, de Mozart, e Carmen, de Bizet, fazem parte da artilharia musical.
Não é a primeira vez que a música é usada como bomba de efeito moral. Forças militares americanas já usaram caixas de som no volume máximo contra prisioneiros no Iraque, no Afeganistão e na Baía de Guantánamo. Entre as canções selecionadas pelo Exército ou pela polícia para quebrar o ânimo dos adversários estão Paranoid, do Black Sabbath (contra Manuel Noriega, em 1989), o tema do personagem Barney (no Iraque, em 2003), These Boots Are Made for Walkin’, na voz de Nancy Sinatra (contra o líder de uma seita religiosa, em 1993), e Oops!… I Did It Again, de Britney Spears (contra piratas somalis, em 2013).
O ecletismo da playlist do inferno, que vai de Mozart a Britney Spears, confirma o que qualquer um que passou o Carnaval embalado pela trilha sonora espaçosa do vizinho deve concordar: música ruim é aquela que somos obrigados a ouvir.