Por Luiz Marques
Docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário da Cultura do RS
Dezembro. Tempo de pensar no “humano, demasiado humano” coordenador da Pastoral do Povo da Rua na Arquidiocese de São Paulo. O religioso trabalha com e para as pessoas destruídas, esfarrapadas, famélicas. Enfrenta preconceitos, entre os quais o de que os desabrigados são oriundos do Nordeste.
– Os que dormem ao relento são majoritariamente do Sudeste – contesta, com conhecimento de causa.
Vários problemas levam alguém a abandonar tudo: a ausência de vínculos familiares, a perda de entes queridos, as doenças mentais, o uso de drogas, o alcoolismo, o desemprego, a violência. Como no verso do poeta, é preciso “pagar a pesada moeda” para percorrer como uma sombra os humores da cidade. Sobre dar ou não esmola aos que penam a miserabilidade, diz:
– Segue a pedagogia do olhar.
O Lázaro que bate à porta expõe uma necessidade, e com a mão estendida entrega o Evangelho.
A sociedade de consumo tenta esconder os precarizados, que se multiplicam na paisagem urbana e impactam o sonho narcótico de cidadãos/consumidores, preenchendo com a última moda o (nosso) vazio espiritual frente a um mundo transtornado. A exposição de tantas vidas secas relegadas à invisibilidade denuncia o agravamento das desigualdades. O silêncio das placas hasteadas nos semáforos questiona a sedução das vitrines iluminadas, que celebram o fetichismo das mercadorias nos shopping centers – para José Saramago, as modernas cavernas da mitologia grega.
O encantamento perdido das narrativas religiosas, após a razão e a ciência se fazerem hegemônicas, deslocou o sentimento do sagrado para a insaciável produção em série de nouveautés. Até os adereços de distinção social que provinham dos títulos nobiliárquicos agora provêm das novidades. No caso, de luxo. O simulacro de nobreza transparece na atitude dos que medem o “bom gosto” pelo preço da carta de vinhos, a degustação em restaurantes caros e as viagens à Disneylândia. Paraíso mundano da socialite que censurou Ariano Suassuna por não conhecer aquele parque de diversões.
Com o “amor ao próximo”, o sacerdote toma o partido da generosidade ao confrontar a ostentação. De manhã, empurra o carrinho de supermercado com mantimentos para distribuir aos “irmãos da rua”. A máscara para se proteger do vírus é presente do Consultório da Rua. O avental provoca uma reflexão teológica. A vestimenta é usada por agentes da saúde para servir aos pacientes da pandemia. As manchetes vieram ao quebrar a golpes de marreta as pedras sob um viaduto, ali instaladas para expulsar “os pobres, os negros e os imigrantes”. Funcionou. A Câmara de Vereadores aprovou uma lei para coibir as práticas administrativas eugênicas, que legitimam a depuração sócio-racial.
A impressão é que as elites do poder não ultrapassaram o segundo dos quatro estágios de desenvolvimento cognitivo da psicologia piagetiana. A saber, o “pré-operatório”, de sete a 11 anos, em que a criança possui uma visão egocêntrica do real e tem por referência o próprio eu. Nesse estágio, prevalece a comunicação através de símbolos. Rosa? Menina. Azul? Menino. Vermelho? Comunista. Gestão? Privatização. O Brasil vai mal? STF. Os estereótipos de exclusão estreitam o espaço público democrático e a necessária empatia com o sofrimento alheio, o que impede a elaboração da dimensão ética da liberdade e da justiça.
Vale o alerta de Joaquim Nabuco. Foi fácil fazer a abolição, difícil será retirar a escravidão dos hábitos das classes privilegiadas.
A questão não é intelectual, é cultural. A ideologia moderna transformou o egocentrismo num valor, e o american way of life, entendido como autossuficiência, no ideal de existência. A ponto de a liberdade individual se tornar o ir e vir da negação arrogante ao direito dos outros. “Trata-se de uma configuração do social, não de um traço isolado”, explica Louis Dumont na obra clássica sobre O Individualismo.
Por sorte, no meio do caminho tem um padre que condena a adoração do “bezerro de ouro” e a distorção da fé católica ou evangélica pela pregação de um Deus todo-poderoso.
– Ele é amoroso – corrige. – E misericordioso – acrescenta, palavra composta por “mísero” e “córdia” que significa “coração para os míseros”.
Jesus pregou o amor na história em meio às adversidades de um Império, por óbvio, contrário à mensagem do igualitarismo cristão. Amor à Maneira de Deus (ed. Planeta), o livro de Júlio Lancellotti sobre os náufragos do sistema meritocrático, recupera o cristianismo primitivo sem fazer a apologia da pobreza. Mas a defesa da precedência do bem comum na economia e na política. Que a solidariedade sirva de guia civilizacional pós-pandêmico. Amém.