Podemos dizer pelo menos duas coisas a respeito do fascismo sem medo de errar. A primeira é que ninguém gosta de ser chamado de fascista ou se reconhece como tal. A segunda é que nem todo mundo que usa a palavra sabe muito bem do que está falando. “Já ouvi chamarem de fascistas fazendeiros, lojistas, o sistema de crédito social, punição corporal, caçadores de raposas, homossexuais e Gandhi”, escreveu George Orwell em 1944.
Anos depois da morte do autor de 1984, ainda há muita confusão entre uma pessoa que pensa diferente e outra que age de forma a impedir que a diferença de pensamento seja possível – a primeira pode ou não ser fascista, a segunda certamente é. A boa notícia é que a bibliografia sobre o assunto tem aumentado muito. A má notícia dentro da boa notícia é que todos esses livros sobre fascismo e ameaças às democracias liberais não estão chegando às livrarias à toa.
Um dos melhores títulos dessa nova leva de estudos que ajudam os desconfiados a identificarem precocemente os sinais de que a vaca democrática pode estar indo para o brejo deve ser lançado no Brasil até o fim do ano pela editora gaúcha L&PM. Como Funciona o Fascismo: A Política do “Nós” e “Eles”, de Jason Stanley, saiu nos EUA em setembro e chegou ao topo da lista dos livros mais vendidos na categoria filosofia política. O título da resenha publicada no jornal The New York Times ajuda a entender por que o livro anda fazendo tanto sucesso por lá: “Seria Donald Trump um fascista?”.
A tese central de Jason Stanley é a de que o fascismo é, antes de mais nada, uma estratégia para conquistar o poder. Ou seja: o fascismo não tem ideologia e pode se adaptar a diferentes tipos de discurso. Estudando exemplos do passado e líderes do século 21, Stanley montou uma espécie de “kit fascismo” básico.
O primeiro ingrediente da receita é a ansiedade. O discurso fascista prospera em momentos de crise, instabilidade e corrupção. Deve-se eleger um inimigo público número 1 (um povo, uma raça, uma ideologia...) e culpá-lo por todos os males — além de insistir na fantasia de que, no passado, sem eles, a vida era bem melhor. Aliás, embaralhar verdade e mentira é outra técnica essencial do kit fascismo. Quanto mais as pessoas tiverem dificuldade para distinguir uma da outra, mais facilmente serão manipuladas.
É importante também desqualificar professores, intelectuais, jornalistas, artistas, estudantes — porque, enfim, eles são imprevisíveis. Last, but not least, movimentos fascistas celebram a masculinidade tosca, de preferência armada, dos gestos gratuitos de violência e intimidação.
“O sintoma mais marcante da política fascista é a divisão. Destina-se a dividir uma população em ‘nós’ e ‘eles’ , apelando para distinções étnicas, religiosas ou raciais e usando essa divisão para moldar a ideologia e, em última análise, a política”, resume Stanley. Não por acaso, o espetáculo conceitual, antifascista da primeira à última nota, apresentado por Roger Waters no Brasil ao longo do mês de outubro, chamava-se exatamente Us +Them (“nós e eles”). Depois de toda a polêmica do período eleitoral, a última frase da turnê brasileira de Roger Waters — dita em Porto Alegre, na última terça-feira (30) — não foi de enfrentamento, mas um apelo ao desarmamento de corações e coldres: “Cuidem uns dos outros”.
Cordialidade, respeito, gentileza, amor: todos os bons sentimentos são, em essência, antifascistas. Cuidemos, pois, uns dos outros.