"O reinado do homem branco de meia-idade acabou", afirma Claire Underwood (Robin Wright) no trailer da sexta e última temporada de House of Cards, divulgado nesta quinta-feira (27). Na série, Claire é alçada ao posto de presidente dos Estados Unidos porque o marido, Frank Underwood (Kevin Spacey), está morto e ela assume seu lugar. Na vida real, a trama apenas moldou-se à necessidade de eliminar o personagem vivido pelo ator Kevin Spacey depois que uma série de acusações de abuso sexual vieram à tona, em outubro do ano passado, tornando sua permanência na série insustentável. Não deixa de ser uma ironia que a frase "empoderada" de Claire Underwood tenha vindo a público no mesmo dia em que um juiz indicado à Suprema Corte por Trump teve que se explicar diante do Senado depois de ser acusado de abuso sexual.
O embate que mobilizou a opinião pública americana nos últimos dias tem várias camadas de sentido. Na superfície, trata-se do velho duelo de versões entre vítima e acusado: uma palavra contra a outra. A professora de psicologia Christine Blasey Ford, 51 anos, acusa o juiz Brett Kavanaugh de tentar estuprá-la quando os dois estavam no colégio, em 1982. O juiz nega. Mas a disputa é também entre republicanos e democratas, liberais e conservadores, esquerda e direita, jovens e velhos. Se Kavanaugh for nomeado, a corte, que hoje tem quatro juízes conservadores e quatro progressistas, terá uma maioria conservadora sólida - ameaçando avanços recentes da sociedade americana no campo dos costumes.
Em um plano mais profundo, Kavanaugh x Ford reflete uma guerra cultural em curso nos EUA e em boa parte do mundo ocidental. Campanhas como o Me Too, contra o assédio sexual, e um feminismo mais engajado e menos complacente com o assédio, a violência e o tratamento desigual de homens e mulheres têm tornado cada vez mais difícil a vida do "homem branco de meia-idade". De que lado os americanos da Era Trump querem estar?
Na arena do Senado, Ford ganhou longe nos quesitos dignidade e verossimilhança. Evitou os conflitos políticos, não falou mais do que sabia e manteve uma postura equilibrada, apesar de estar sob forte emoção e muita pressão externa - ela e sua família vêm sofrendo ameaças desde que fez as denúncias. Seu oponente, por sua vez, mostrou-se um homem fraco, nervoso e com dificuldades para convencer mesmo seus próprios aliados. Ainda assim, a Comissão de Justiça do Senado aprovou nesta sexta-feira (28) a indicação de Kavanaugh à Suprema Corte, por 11 votos a 10. Mas há um porém: o senador republicano Jeff Flake, voto decisivo para a aprovação, pediu que a votação de Kavanaugh só seja levada ao plenário do Senado depois de uma semana de investigações do caso pelo FBI.
Mesmo que nenhuma das três acusações que pesam contra Kavanaugh seja verdadeira, o que não parece provável, ficou claro que ele não tem envergadura para assumir um posto na Suprema Corte - principalmente se pretende defender "a família e os bons costumes". Kavanaugh, aliás, demonstrou o tipo de desequilíbrio que acabaria com a carreira de qualquer mulher que aspirasse a um posto com o mínimo de destaque - que dirá uma vaga na Suprema Corte.
Dois pesos, duas medidas. A frase de Claire Underwood ainda é mais "wishful thinking" (pensamento "desejoso") do que realidade. Mas que homens como Kavanaugh estão apavorados, isso estão.
ENTENDA O CASO
9 de julho
Donald Trump indica o juiz conservador Brett Kavanaugh, de 53 anos, para preencher uma vaga na Suprema Corte. Com Kavanaugh, os conservadores conquistam a maioria na mais alta corte do país, depois de 30 anos de equilíbrio entre os dois lados. Opositores do aborto, legalizado pela Suprema Corte em 1973, celebraram com champanhe a indicação, que pode abrir a possibilidade de uma revisão do tema.
13 de setembro
Senadores democratas revelam ter enviado ao FBI um pedido de investigação de denúncias de abuso sexual feitas contra o juiz Brett Kavanaugh. As denúncias de tentativa de estupro foram feitas por uma ex-colega de escola, que preferiu permanecer anônima. Os fatos teriam acontecido em 1982, durante uma festa em que Kavanaugh e um amigo, sob efeito de álcool, teriam arrastado a vítima para um quarto e tentado estuprá-la.
16 de setembro
A professora de psicologia Christine Margaret Blasey Ford, de 51 anos, revelou sua identidade e assumiu ter feito as denúncias contra Kavanaugh.
23 de setembro
Surgem novas denúncias de abuso sexual contra Kavanaugh, desta vez de colegas dos tempos de faculdade.
27 de setembro
Ford e Kavanaugh prestam depoimento diante do Comissão de Justiça do Senado.
28 de setembro
A Comissão de Justiça do Senado aprova a indicação de Kavanaugh à Suprema Corte por 11 votos a 10, mas o senador republicano Jeff Flake, voto decisivo para a aprovação, pediu que a votação de Kavanaugh só fosse levada ao plenário do Senado depois de uma semana de investigações do FBI.