Li Grande Sertão: Veredas quando estava na faculdade de Jornalismo, no começo dos anos 1990, e o livro nunca mais saiu do meu infinito particular. Ainda sob o impacto da leitura, usei uma frase do romance de Guimarães Rosa como epígrafe do meu trabalho de conclusão de curso, que tratava das crônicas do jornalista Carlos Reverbel (1912 – 1997): "Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas". Grande Sertão é um livro que se lê sublinhando e anotando frases, e não foi difícil encontrar uma que parecia muito adequada para a primeira página de um trabalho acadêmico. (Epígrafes e dedicatórias são mais ou menos como tatuagens: com o passar do tempo, podem nos orgulhar ou nos deixar constrangidos. Eu ainda me orgulho da minha.)
Voltei ao livro algumas vezes desde então – não para reler por inteiro, mas para a matar a saudade da história tropeando sem rumo pelas páginas. Também levei a sério esse negócio de "o sertão está em toda parte". Comprei todas as novas edições do romance que me pareceram especialmente irresistíveis, além de muitos livros sobre o livro. (Entre eles, meu preferido, Os Descaminhos do Demo, da professora Kathrin H. Rosenfield, aqui da UFRGS.) Assim que foi lançado, encomendei o DVD da minissérie de 1985, dirigida por Walter Avancini – uma das melhores produções da Globo de todos os tempos, na minha nada isenta opinião. Em 2006, durante as comemorações dos 50 anos do livro, fui a São Paulo visitar a exposição sobre Guimarães Rosa que inaugurou o Museu da Língua Portuguesa. Em 2014, li a versão em quadrinhos criada pelos gaúchos Eloar Guazzelli e Rodrigo Rosa. E teria ido atrás da montagem de Bia Lessa se, para nossa sorte, a peça não tivesse vindo ao Em Cena na semana que passou. Cada uma dessas experiências com o livro, transposto para outras linguagens e filtrado pela sensibilidade de outros leitores, me pareceu excepcional a sua maneira. Ou é muita sorte ou só os melhores leitores se arriscam a enfrentar o livro.
Para mim, boa parte do fascínio do romance reside em uma harmonia rara entre razão e emoção, aventura e metafísica, sublime e prosaico. Perdemos o fôlego nas cenas de guerra, ao mesmo tempo em que cada um dos aforismos de Riobaldo mobiliza nossa atenção mais profunda e reflexiva. Esse vaivém entre o mundo de fora e o mundo de dentro ("O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais") espelha, de alguma forma, a travessia cotidiana de cada um de nós entre o vivido e o narrado, o real e o sonhado, o imprevisível e o planejado.
Olhando para trás, Riobaldo não tem certeza se sempre escolheu as veredas certas ou se soube distinguir o bem do seu contrário. Quis trilhar o caminho dos justos, como quase todo mundo, mas, no miúdo da vida, nem sempre resistiu à sedução do outro lado. Na figura do "pacto com o demo" – real ou figurado, Riobaldo se pergunta –, Rosa nos convida a refletir sobre nossa própria fragilidade moral diante dos desafios inesperados que surgem pelo caminho. Insegurança, desespero, cansaço, ambição: o que levaria alguém a decidir firmar um pacto com a porção mais sombria das trevas mais escuras? Mesmo ateus, como eu, andam se perguntando muito isso ultimamente.