O vento gelado zunia de um lado ao outro da Rua da Praia, mas o clima era de sábado de Carnaval. Carnaval gaúcho, bem entendido: touca e japona como fantasia, quentão esquentando as mãos e a alma – e no ar aquela satisfação, tipicamente meridional, de quem desafia o termômetro e o risco de gripe divertindo-se ao ar livre. Era a primeira edição do civilizadíssimo projeto Casa Expandida, que a partir de agora vai movimentar as noites da Casa de Cultura Mario Quintana no primeiro sábado de cada mês.
No palco, Dejeane Arruée, Graziela Pires e Monique Brito, da banda 50 Tons de Pretas, comandavam o baile com um repertório capaz de derreter qualquer iceberg de desânimo ou mau humor.
Fundada no mais improvável dos cenários, a alemoa Campo Bom, onde as três meninas se conheceram (a baiana Monique mudou-se ainda bebê para a cidade com a família, Dejeane é de Porto Alegre e Graziela mora em Novo Hamburgo), a 50 Tons de Pretas usa a música como veículo de empoderamento da cultura negra e feminina. E a plateia, agradecida, canta junto e pede bis.
O título do projeto surgiu meio de brincadeira, como contou Grazi em uma entrevista ao site HuffPost: "Um colega me ligou e perguntou: 'Grazi, como é o nome da banda?'. Falei sei lá, bota 50 Tons de Pretas. Foi assim, saiu na hora, porque estavam lançando o filme (50 Tons de Cinza), e ficou". O nome da banda, por ironia, acabou ganhando novos sentidos nos últimos dias. Afinal, quantos são os tons de pretas? Dá para contar? Faz diferença?
O debate veio à tona depois que a cantora paulista Fabiana Cozza, filha de pai negro e mãe branca, abandonou o elenco do espetáculo Dona Ivone Lara – Um Sorriso Negro depois de ser atacada, nas redes sociais, por supostamente ter a pele "clara demais" para interpretar a sambista carioca. Fabiana é uma cantora de samba experiente e conviveu por mais de duas décadas com Ivone Lara – e a família garante que a sambista manifestou ainda em vida o desejo de que Fabiana a interpretasse no espetáculo. Nada disso foi suficiente para acalmar as críticas que acusavam a produção do musical de "colorismo" – a discriminação pelo tom da cor da pele. Em um texto publicado em sua página no Facebook e endereçado "aos irmãos", Fabiana diz que "dormiu negra na terça-feira e acordou branca na quarta" e explica por que decidiu se afastar do espetáculo. Na abertura do texto, lamenta o episódio:
"O racismo se agiganta quando transferimos a guerra para dentro do nosso terreiro".
Se aprendemos alguma coisa nos últimos tempos é que cala-boca já morreu e todas as vozes merecem ser ouvidas e levadas em conta. Muita gente, branca como eu, nunca havia ouvido a expressão "colorismo" ou pensado sobre os diferentes tipos de preconceito envolvidos com a quantidade de pigmentos na pele. Mas todas as boas intenções não tornam menos violenta e injusta a campanha contra Fabiana Cozza. Suspeito que os tons de pretas devem ser muito mais do que 50 – e sonho com o dia em que o Brasil vai respeitar e celebrar todos eles.