Com um show grandioso e cheio de hits, Beyoncé fez história na abertura do Coachella no último fim de semana: além de bater o recorde de visualizações online de um espetáculo ao vivo, tornou-se a primeira mulher negra a ser escalada para abrir o megafestival californiano.
Nos dias seguintes, porém, os comentários não eram apenas sobre o espetáculo que rolou no palco. Isso porque o bilionário Philip Anschutz, dono do conglomerado de entretenimento AEG, que promove o Coachella, vem sendo acusado de financiar grupos de extrema-direita que atuam contra os direitos LGBTQI, o que gerou um movimento de boicote ao festival.
Em Porto Alegre, em escala bem mais modesta, rolou nos últimos dias um mal-estar parecido. Ofendidos por uma piada de conteúdo político publicada no Facebook por Carlos Schmidt, dono do Guion Center, frequentadores do cinema anunciaram um boicote à sala que se consagrou exibindo filmes não comerciais. Diante da reação, Schmidt pediu desculpas, mas ainda é cedo para avaliar que tipo de efeito o movimento pode ter na bilheteria de um cinema pequeno que sobrevive a duras penas entre gigantes do segmento.
Episódios como o do Coachella e o do Guion Center têm se tornado cada vez mais frequentes e guardam semelhanças, embora o primeiro envolva um bilionário e o segundo, um dono de cinema de bairro. Ambos se encaixam na lógica da moral de formigueiro: nenhum inimigo é tão grande que não possa ser destruído com milhões de mordidas miúdas. Vale para políticos, empresários, artistas, anônimos. O pretexto para acionar a ordem de ataque pode ser verdadeiro ou falso, ato ou pensamento, crime ou opinião, público ou privado. Os xerifes do universo condenam antes e perguntam depois – formigas não são reconhecidas pela ponderação.
Continuamos cada vez divididos entre esquerda e direita, liberais e conservadores, apocalípticos e integrados, mas nos últimos tempos também temos sido chamados a nos posicionar muito claramente com relação à liberdade de expressão (de todas as vozes), aos direitos individuais (de todas as pessoas), à convivência entre diferentes tipos de pensamento (os afins e os contrários aos nossos). É preciso, sim, ter coragem para defender o que consideramos justo mesmo indo contra a corrente, porque é assim que a sociedade evolui, mas sem abrir mão do discernimento e do respeito ao contraditório. A democracia não nasceu para regular as relações de uma massa homogênea de pessoas, mas para permitir que diferentes grupos, com diferentes interesses e agendas muitas vezes conflitantes, convivam republicanamente. Democracia é complexa e exige esforço. Trabalhar pela aniquilação de tudo aquilo que nos incomoda é fácil porque é o impulso humano mais primitivo. Para iniciar um linchamento ou um boicote, saltam 10 para ajudar. Para defender a tolerância, sobram apenas os sensatos – e as eventuais vítimas do massacre.