Tenho uma amiga que vem sofrendo com a saúde fragilizada do pai. Ele enfrenta um câncer.
Mesmo cansada, mesmo exausta da peregrinação ao hospital, ela não amaldiçoa os dias difíceis.
Quando eu pergunto se está tudo bem, ela me responde: “tudo dentro do possível”.
Jamais estará bem como antes porque ele continua doente. Mas jamais estará ruim porque ele continua vivo.
O possível é lidar com o teto do sofrimento. O possível é suportar a instabilidade da dor. O possível é reconhecer o medo da perda. O possível é a saudade acumulada nas calhas dos olhos, com infiltração pelas paredes do rosto e alguns baldes distribuídos pela memória. As goteiras são constantes.
Você se imagina sem o ente querido, e isso machuca mais do que uma ausência consumada. O quase suspende uma existência. É como uma greve de felicidade. Felicidade torna-se somente alívio.
“Podia ser pior” é o máximo de contentamento que se alcança durante o período do tratamento.
Toda incerteza é uma esperança. Todo sol da presença é um diagnóstico da sorte.
Minha amiga jornalista segue trabalhando com o coração na mão. Segue trabalhando sem uma das mãos, já que uma delas está ocupada pelo coração.
Às vezes derruba o coração no teclado e não lembra o que iria escrever. Surge um vislumbre de vazio, de uma rotina que nunca mais será igual.
Toda incerteza é uma esperança. Todo sol da presença é um diagnóstico da sorte.
O coração se parece com um celular apitando dentro do bolso da camisa, assustando quando ela se encontra distraída, estremecendo a pele quando ela menos espera.
Ela esquece o coração dentro da despensa no momento de fazer o café, ou no armário, quando vai pegar as suas roupas.
E anda que nem desvairada pela casa à procura do coração. Ela se obriga a ligar para o coração tentando localizá-lo.
O coração sempre está com o pai. À espera de uma notícia. Há dias em que ela agradece o silêncio e não deseja receber nenhum telefonema, com receio de que seja a morte. A Morte em pessoa. A Morte assume a condição humana para quem não quer perder ninguém, a ponto de a empurrarmos para longe, não a permitindo falar, tapando a sua boca, impedindo que ela pronuncie qualquer data ou nome.
Morte é, no fim, somente data e nome, formando um legado miserável. Não chega perto da abundância da vida e da sua herança de desígnios.
Minha amiga me contou que a luta tem sido grande. Que não diferencia nem mais o que é a sua fé do que é o seu amor.
Falei para ela que não é o seu papel lutar. Sugeri que deixasse seu pai lutar, pois só ele pode lutar. Só ele pode dizer até onde aguenta.
A função dela como filha é se despedir um pouco por dia. Despedir-se é fazer o pai se ver amado. É fazer com que ele tenha certeza do quanto é admirado e necessário.
Se ele se recuperar, a despedida feita com antecedência não terá sido inútil nem a angústia terá sido em vão. Apesar de o outro saber o que sentimos, não custa nada sermos redundantes, sermos didáticos, sermos excessivos.
Palavras são estímulos. Servirão de acréscimo da convivência, irão iluminar a filiação com mais amizade.
Reconhecimento em vida é tudo o que o pai deseja. É a sua verdadeira cura.