É natural, diante de uma tragédia envolvendo crianças, projetar-se na condição de pais das vítimas. Vem à tona uma incondicional identificação com o sofrimento dos enlutados.
Qualquer um que cuida de existências miúdas partilha a sede de justiça e passa a vociferar aos quatro ventos: se fosse com o meu filho, cortaria o assassino em milhões de pedaços.
A empatia é imediata com a dor inominável de quem teve subtraída a vida de sua menina ou de seu menino.
Mas há papéis sombrios e trevosos que são esquecidos no cenário do crime: os dos pais do homicida.
É um fardo violento de culpa que recai nos ombros dos dois: como eu criei um monstro? Como não percebi que ele era violento?
Ter um filho assassinado ou ter um filho assassino é perder o filho de qualquer jeito.
Emerge o remorso por não ter se antecipado ao surto e prevenido mortes de inocentes.
Nem sempre os sinais da maldade são evidentes.
O filho pode ser timidamente inofensivo, rigorosamente obediente, e manter os seus pesadelos no quarto, de porta fechada.
Pode ser educado com todos, mas alimentar uma alucinação por visibilidade súbita, por se tornar manchete, arquitetando matança em segredo por vários anos a fio.
Pode engolir a seco desaforos, sem reação alguma, aguardando dar o troco por todo o sofrimento jamais confessado num exclusivo espetáculo de violência.
Pode alcançar excelentes notas, não ter participado de nenhum incidente de agressão ou de mau comportamento na escola, e atuar, usando codinome, como líder de um grupo sádico nas redes sociais.
Pode ter emprego estável, namoro firme, e mergulhar anonimamente em pesquisas sobre armas e explosivos.
A tragédia nem sempre grita, às vezes geme baixinho no subterrâneo da mais pacata rotina, num murmúrio quase imperceptível.
Só que o filho que realiza um massacre arrasta a família inteira junto para o degredo, incluindo as próximas gerações. O sobrenome será amaldiçoado dali por diante.
Ainda que o pai seja um engenheiro famoso pelas obras sociais, ainda que a mãe seja uma médica consolidada no atendimento à comunidade, eles se tornam unicamente pai e mãe de um frio e sanguinário assassino. Tudo o que fizeram de bom desaparece pelo atentado do filho.
No livro Precisamos falar sobre o Kevin, a escritora norte-americana Lionel Shriver retrata a angústia de uma mãe que vê seu filho executar dezenas de colegas na escola. Ela tenta reprisar onde errou, em que momento aquele menino amado mudou perigosamente de rota.
Vai recuperando omissões ao longo da educação. Kevin maltrata a irmã e seria a provável causa de dois graves acidentes na infância dela – a morte de seu pequenino animal de estimação no triturador da pia e a cegueira em um dos olhos.
Como a responsabilidade de Kevin jamais foi determinada, a mãe acabou deixando passar. O distúrbio é como uma longa infiltração que se forma no caráter até desabar as paredes da casa.
A principal questão filosófica que surge na obra é exatamente esta: ela teria como evitar a sina?
Dificilmente. Psicopatas são mestres na dissimulação.
“Tornei-me uma daquelas pessoas de quem eu sentia pena”, a personagem desabafa, devido a sua impotência.
Eu não queria estar no lugar dos pais do assassino de 25 anos que, armado de um machado, matou covardemente quatro crianças na escola infantil Cantinho Bom Pastor, em Blumenau (SC), na última quarta-feira (5).
Diante da autoria de uma chacina dessas, o filho não morre para os pais, é muito pior: os pais certamente desejam que o filho nunca tivesse nascido. É um aborto retroativo.
Porque ter um filho assassinado ou ter um filho assassino é perder o filho de qualquer jeito.