Já não basta perder filhos que estavam no esplendor da sua juventude dentro da ratoeira da boate Kiss, sem portas nem janelas, muito menos dignidade. A casa tinha capacidade para 690 frequentadores e contava com mais de 900 no crepitar das chamas.
Já não bastam as fartas irregularidades, que tornam o que poderia ser um acidente em assassinato em massa: uso de artefato pirotécnico num ambiente interno; espuma inflamável como revestimento; extintor de incêndio retirado da parede por não combinar com a decoração; obstáculos no acesso à única saída e atuação dos seguranças impedindo a evacuação; descumprimento de uma série de normas de emergência; obras sem perito; alvará sanitário vencido.
Já não basta a estranha retirada dos nomes do prefeito e de outras autoridades da responsabilização pelo crime. Dos 28 indiciados por envolvimento direto e indireto no incêndio — entre donos da boate, integrantes da banda, funcionários da prefeitura e até bombeiros —, apenas quatro restaram nos autos.
Já não basta o aniversário sombrio de dez anos sem julgamento apropriado dos réus.
Já não bastam séries e documentários revivendo momento a momento do desespero do incêndio que culminou com 242 mortos e 636 feridos.
A ausência de escrúpulos galgou mais um patamar de imoralidade no Rio Grande do Sul.
Familiares das vítimas de Santa Maria sofreram uma tentativa de golpe.
Roubar os enlutados é a mais vilipendiosa falta de caráter, a mais ignominiosa demonstração de crueldade no trato humano.
Urubus e corvos recuariam, teriam mais decência.
Suposto representante de um escritório de advocacia telefonou para uma das sobreviventes dizendo que havia um dinheiro a receber a título de indenização do governo. Precisava saber o número do documento e de conta dela para verificar o fundo disponível.
A jovem lhe passou os dados. Horas depois, ele ligou novamente explicando que não seria possível transferir a quantia, retida pela Receita Federal por valores inadimplentes. Prontificou-se a resolver as pendências se fossem transferidos os débitos das multas em aberto por Pix.
Felizmente a sobrevivente contatou o seu próprio advogado em tempo hábil e descobriu a farsa. O mesmo assédio, também frustrado, sofreu o pai de uma das vítimas.
O que me preocupa é a que ponto chegamos no imbróglio jurídico.
São os efeitos nefastos da impunidade. Não há nenhuma indenização prevista, nenhuma decisão a respeito do caso.
Se a justiça já tivesse sido feita, nada disso estaria acontecendo. Não teríamos ameaças de estelionato.
A anulação do júri deu espaço à ação de oportunistas, facilitou a investida de ladrões de gabinete, que se aproveitam da precariedade de informações sobre os direitos legais dos envolvidos.
E não é qualquer golpista que vem atuando. Trata-se de alguém educado e bem informado das lacunas do processo. Não deve ser um miserável sem instrução, mas um almofadinha salafrário com plena consciência no exercício de fraudar pessoas em sofrimento.
O mais grave de tudo não é a mentira do aliciamento, mas a verdade que há por trás dos esquemas.
Pelo andar vagaroso do tribunal, dificilmente os familiares das vítimas e os sobreviventes vão receber qualquer ressarcimento ainda em vida.