Passados dez anos do incêndio da Boate Kiss, em Santa Maria, onde morreram 242 pessoas, ninguém está preso pelo caso. Quatro pessoas chegaram a ser condenadas no fim de 2021, mas a decisão foi anulada pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em agosto do ano passado. Recursos ainda tramitam em Cortes superiores e um novo julgamento poderá ter de ser realizado.
Ao final de um julgamento que se prolongou por dez dias, o Tribunal do Júri do Foro Central de Porto Alegre condenou pela morte de 242 pessoas os quatro réus acusados do incêndio: os sócios Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Londero Hoffmann e os integrantes da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Augusto Bonilha Leão.
Eles receberam, na oportunidade, penas que variavam de 18 a 22 anos de prisão. Porém, menos de dez meses depois, a Justiça acolheu parte dos recursos das defesas e anulou o júri que condenou os quatro réus.
Desolação
O juiz Orlando Faccini Neto conduziu o maior júri popular da história do Rio Grande do Sul e lamentou a decisão. "Eu recebi com desolação a notícia. Fiquei frustrado. Dediquei minhas melhores energias, procurei atuar com minhas melhores intenções para que o júri se iniciasse, tramitasse com normalidade e que fosse concluído, imaginando que de alguma forma isso representaria uma resposta do sistema judiciário para o episódio que ocorreu já há uma década", disse.
A decisão de anular o julgamento foi da 1.ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS), com um placar de 2 votos a 1. As razões apontadas vão de critérios para a escolha dos jurados a provas apresentadas supostamente sem prazo suficiente para análise da defesa, o que é contestado pelo juiz do caso.
Faccini Neto teme também que a tragédia de Santa Maria se iguale, no âmbito judicial, a um dos maiores casos que a Justiça brasileira já recebeu. "Meu receio é de que esse caso da Boate Kiss se assemelhe ao caso do Carandiru, em São Paulo. Que, mesmo com todas as diferenças que há entre eles, depois de 30 anos a Justiça ainda não conseguiu ter uma resposta", disse.
O processo está para análise do Superior Tribunal de Justiça (STJ), após um pedido do Ministério Público, que ingressou com embargos declaratórios contra a decisão de nulidade da 1.ª Câmara Criminal. Júlio César de Melo, subprocurador-geral de Justiça para Assuntos Institucionais do Ministério Público do Rio Grande do Sul, afirmou que as irregularidades apontadas pelas defesas não causaram prejuízo aos acusados e suas defesas.
"Estamos sustentando ainda que uma nulidade para ser reconhecida tem de ser invocada tão logo aconteça o fato. O que não ocorreu, visto que estão usando situações que não foram trazidas no dia do julgamento. E fica o questionamento: por que não manifestaram na hora? E qual prejuízo então que gerou para a defesa essas situações que aconteceram?", disse Melo.
Novo julgamento
O advogado do réu Mauro Hoffmann, Bruno Seligman, afirmou desejar um novo julgamento e acredita que, inclusive, ele já poderia ter ocorrido. "As famílias, natural que assim estejam, estão angustiadas por um desfecho. Os acusados também. E protelar isso só prolonga as dores de todo mundo. Mas precisamos deixar claro que, nesses dez anos, as maiores demoras a que esse processo foi submetido foram causadas por recursos do Ministério Público. Da nossa parte, só resta aguardar um desfecho. Acreditamos, sim, que a anulação será mantida e com isso teremos um novo julgamento", disse.
Defesa
Seligman mantém a convicção da absolvição de seu cliente perante um novo julgamento. "Mauro não teve responsabilidade criminal nesse evento. A responsabilidade dele limita-se a de um empresário. Ele não teve nenhuma ação ou omissão no momento que possa ser imputada a ele a culpa como vem sustentando o Ministério Público", afirmou.
Tatiana Borsa, que defende o músico Marcelo de Jesus dos Santos, também espera os trâmites dos recursos interpostos pelo Ministério Público que estão sendo analisados pelo Superior Tribunal de Justiça. "Temos pressa para que esse julgamento saia o mais rápido possível para que isso acabe o quanto antes."
O advogado de Luciano Bonilha, Jean Severo, afirmou que o cliente continua trabalhando normalmente enquanto aguarda a decisão do STJ, mas espera por um novo julgamento. Jader Marques, que responde por Elissandro Spohr, não quis se manifestar.
Procurador
O Ministério Público reforçou que, desde o início, trabalha para auxiliar as famílias e a comunidade de Santa Maria. O procurador disse querer "que prevaleça a justiça feita por decisão proferida pela sociedade".
'Não tem receita para viver o luto', diz sobrevivente, que perdeu irmão
Faz dez anos que Jessica Montardo Rosado e o irmão Vinicius planejaram comemorar o aniversário de um amigo. Na verdade, a festa já havia ocorrido à tarde, mas como eram jovens quiseram estender em uma balada. A duas quadras e meia de distância, e apesar da fila gigante, a escolhida foi a Boate Kiss. Poderia ter sido pior se Vinicius, estudante de Educação Física e jogador de rúgbi, não tivesse conseguido salvar 14 pessoas. Ele mesmo, porém, não escapou.
Jessica teve de aprender a lidar com a dor da perda do irmão. Recorreu a ioga, acupuntura, escreveu sobre traumas nas redes sociais e também aos conselhos de outros parentes de vítimas. "Não tem receita para viver o luto. Cada um vive a dor de uma forma. O que sempre digo para as pessoas é para que se permitam, pois sempre me permiti", diz ela, hoje com 34 anos. "Eu vi a hora que o Marcelo (de Jesus Santos, da banda Gurizada Fandangueira) colocou a luva, pegou o artefato pirotécnico e na hora do refrão, ergueu as mãos e uma faísca pegou no teto", afirma ela, que até hoje não consegue ouvir a música Amor de Chocolate, de Naldo, que tocava na hora em que o fogo começou.
Sobrevivente
"Não sei de onde tirei forças, mas coloquei ele nos braços e tirei lá de dentro para que não morresse." Esse é o relato de Ezequiel Corte Real, 33 anos, multicampeão de fisiculturismo, que salvou pelo menos 20 pessoas no dia da tragédia. Também estudante de Educação Física e na época com 23 anos, ele diz que muitas imagens do dia se apagaram - ele teve de buscar ajuda psicológica após o trauma.
O fato de estar na casa noturna naquele dia se deu por acaso. "Um homem passou de carro e disse que estava vendendo os ingressos. Decidimos entrar."
"Nesses 10 anos depois, consigo ver que existe um ponto na minha vida em que ressurgi. Além de ter uma nova oportunidade, consigo sentir que a vida vai muito além do que a gente vive aqui", afirma o fisiculturista.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.