Há pais que já completaram o álbum da Copa do Mundo, mas não foram capazes de completar a carteirinha de vacinação dos próprios filhos.
Participaram de grupos de troca, perderam horas conferindo os números que faltavam, não se esqueceram de comprar pacotinhos nas bancas de revistas, só que não dedicaram uma gota da sua disponibilidade para imunizar as suas crianças de um a quatro anos contra a paralisia infantil.
O entretenimento vem se encontrando, atavicamente, acima das prioridades da saúde pública.
Não sei se já é efeito nefasto do negacionismo da vacinação da covid. Ou uma desaceleração das campanhas governamentais, que antes chegavam a criar quiosques de aplicação nos supermercados com a presença do boneco Zé Gotinha. A realidade é que a vacinação contra a poliomielite no Brasil tem a menor adesão dos últimos 40 anos. Ficamos 30 pontos percentuais abaixo da meta de imunização. Só a Paraíba atingiu o objetivo.
Na minha infância, eu convivia com colegas sequelados na escola, que se deslocavam com botas de ferro ou armaduras. Eu enxergava ao meu lado as consequências da poliomielite, que poderiam ter sido evitadas com a cura descoberta por Albert Sabin, autorizada em 1962.
Como a doença foi controlada e não existe mais a visibilidade das vítimas no nosso círculo de afetos, talvez paire no ar a soberba de que ela é rara ou até inexistente, seguindo aquela prédica de “o que os olhos não veem o coração não sente”.
É uma mentira criminosa. A moléstia altamente contagiosa, erradicada há muito tempo, pode voltar e produzir novos surtos diante de um quadro de alienação familiar.
Quem leu Nêmesis, um dos últimos livros do americano Philip Roth, entenderá a gravidade da epidemia. Nesse romance ambientado numa colônia de férias em Newark, em 1944, um jovem recreador testemunha um por um da sua turma de adolescentes morrendo subitamente ou ficando paralisado por um vírus incompreensível na época. É um Deus me acuda de velórios repentinos e internações hospitalares. Ele se sente culpado por não localizar quem estava transmitindo a doença.
Quando me tornei pai, era uma obrigação preencher o esquema vacinal dos filhos com as cinco doses (duas de reforço). Mais do que uma atitude cívica, o rigor e o controle das autoridades se mostravam tão constantes que a minha competência de cuidador acabava sendo posta em xeque.
O dia D de Vacinação constava como a data mais importante do calendário dos nossos lares, mobilizando multidões aos postos de saúde.
Não existe motivo plausível e racional para retardar a prevenção. Trata-se de uma proteção simples, um colírio no céu da boca, preservando a existência para sempre.
Criança não tem ideologia. Ela não pode escolher. Nem merece ter o seu direito de sobrevivência contrariado pelos seus responsáveis. É uma ignorância que mata.