Terei a maior emoção da minha biografia ao passar o bastão de patrono da Feira do Livro de Porto Alegre e a chave da Praça da Alfândega para o meu pai, o poeta Carlos Nejar, único gaúcho na Academia Brasileira de Letras, com 62 anos de literatura e mais de 80 livros publicados em todos os gêneros. Todos os gêneros mesmo (novela, romance, poesia, ensaio, história, conto, dramaturgia!) – ele pode ser chamado de escritor completo.
Neste momento extraordinário, até esqueço a minha carreira e viro somente filho.
Nunca imaginei que a minha família inteira – a mãe, Maria Carpi, em 2018, eu em 2021 e meu pai em 2022 – fosse alcançar o maior título que um autor do Estado pode almejar: o patronato da Feira. Nem sei como aconteceu tal overdose. Dos 58 homenageados da história, três partiram da mesma casa. Meu medo é que nos chamem de máfia. Os sobrenomes Carpi e Nejar são o novo Corleone da literatura. Já podemos montar uma filial da Câmara Rio-Grandense do Livro.
Conforme a ordem cronológica, o pai deveria ter sido o primeiro, pela sua estreia com Selésis, em 1960, a mãe em segundo, pela sua estreia com Nos Gerais da Dor, em 1990, e eu por último, pela minha estreia com As Solas do Sol, em 1998. Só que Deus caprichosamente embaralhou as peças e trocou a sequência natural. Quis que o filho estivesse entre os pais, de mãos dadas. Quando criança, funcionava assim: uma mão para cada um dos lados, materno e paterno. Posso até fazer um balanço com os dois e pedir que me levantem.
O meu pai e eu partilhamos a desventura de diagnósticos errados. Sofremos previsões equivocadas de nosso futuro. Contrariamos os laudos médicos. Trapaceamos os nossos limites.
Quando tinha sete anos, fui diagnosticado com retardo mental. Mas a minha mãe não avalizou a sentença e entendeu que o meu déficit significava que era um sonhador: eu me distraía por dentro. Como viu que a seriedade da sala de aula não vingava comigo, usou brincadeiras para despertar o gosto pela escrita. Criou jogos educativos e aprendi a ler e escrever brincando no pátio com ela: subindo em árvores, riscando as lajes com giz, pulando amarelinha.
Já o meu pai recebeu o ultimato de seis meses de vida aos 22 anos, por problemas no coração. Ele recém tinha sido aprovado em concurso no Ministério Público. Foi obrigado a recorrer para assumir a função. Quem morreu naquele período, ironicamente, foi o seu cardiologista; o pai converteu o seu aparente fim em permanente urgência de amar e não se deixar para depois. Há 83 anos, engana a sua morte com a eternidade da palavra, aproveitando integralmente cada semestre de sua coragem.
O que me faz concluir que não somos nossas aparências, que diagnóstico não é destino, que a vida é mesmo generosa: um menino com falso retardo mental poderá molhar os ombros de seu pai falsamente moribundo com a verdade de suas lágrimas, com a verdade da sua gratidão, com o choro de felicidade.