Para escrever esta coluna, precisarei trazer algumas questões pessoais para o contexto. Pensei muito de que forma iria abordar o assunto enquanto assistia ao empate da Seleção Brasileira feminina de futebol contra a Jamaica, na manhã desta quarta-feira (2). Aqui não se trata de melindre, até porque não acredito que apenas homens devam falar de futebol masculino e vice-versa.
Vamos aos fatos. A minha escolha para trabalhar com esporte surgiu no começo da adolescência, lá nos anos 1980, quando do nada me vi fazendo anotações em pequenos cadernos de resultados, fichas técnicas de jogos de futebol e tudo mais que a televisão e o rádio pudessem me proporcionar. E tenho todos eles guardados até hoje, numa coleção que só aumenta, assim como a de livros e revistas esportivas. Mas não moro em um biblioteca.
E foi lá, nessa época, que veio aquilo que modernamente se chame de start. Vendo os Jogos Olímpicos de Los Angeles, em 1984, decidi o que queria pro futuro. Mas por que faço essa pequena autobiografia? Para dizer que, nessa época, ter algo além de futebol masculino na TV ou rádio era quase impossível, até Luciano do Valle decidir abrir espaço para tudo, da sinuca ao boxe, e passando pelo futebol feminino.
Lembro de nomes como Meg, Pelezinha, Maradona, Elza e Fia e, se olhar um dos caderninhos, com certeza terei a escalação completa. Assim como lembro do Inter de Bel, posteriormente de Duda e dos jogos que eram transmitidos, um por final de semana.
Aqui vale lembrar que o futebol das mulheres estava liberado para a prática havia cinco anos. Afinal, o decreto que determinava que elas não poderiam jogar durou de 1941 até 1979. E quem pesquisar verá que uma pressão da sociedade determinou tal aberração.
Mas, seguindo nessa questão, o futebol feminino ainda era atração muito mais pela parte estética de algumas atletas do que pela técnica. Bel, a habilidosa camisa 7 do Inter, era uma das musas, assim como a volante Cenira, do extinto Pinheiros-PR, que foi capa de um edição da revista Placar que dava destaque ao futebol feminino, mas com o detalhe de que ela estava maquiada e usando uma pequena calcinha na foto que ilustrava a publicação. Ou seja, não era futebol.
E vou dizer que me sinto à vontade para falar e escrever sobre futebol feminino exatamente por acompanhá-lo, por vê-lo em Jogos Olímpicos e Pan-Americanos e em tantas outras competições. Muitas delas fomentadas pelo apoio do já falecido Luciano do Valle, que assim como é lembrado pelo sucesso do vôlei no país, deve ser reverenciado por ter dado apoio a tantas outras modalidades e nos feito fugir um pouco do futebol masculino.
Vieram Sissi, Michael Jackson, Roseli, Pretinha, Maravilha, Duda Luizelli, Tânia Maranhão, Cristiane, Marta e tantas outras que lutaram para ter apoio, visibilidade e tudo mais que qualquer esporte merece, mas que um país como o Brasil insiste em achar que apenas o futebol dos homens é merecedor.
Após a eliminação brasileira, fui a uma rede social e postei alguns pensamentos. Entre eles, este: "O futebol feminino, em toda sua estrutura, passará por uma provação agora. Ainda mais em um Brasil preconceituoso como o nosso. Mas a hora é de aprendizado, e não o contrário". As respostas vieram no nível que imaginava. Vou enumerar algumas.
"Será que seleção masculina dos EUA, que nunca ganhou um Copa do Mundo, sofre preconceito pq a feminina já foi campeã 4 vezes?", escreveu um internauta.
Outro veio para o lado de só é vencedor e tem respeito quem vence.
"Preconceito. Lacração. Vitimismo. A seleção só vai ter respeito quando conquistá-lo. Enquanto isso, menos lacração e mais futebol".
Atá mesmo a capacidade de Marta, eleita seis vezes a melhor do mundo, foi colocada em dúvida.
"O que a Marta ganhou pela seleção? Será mesmo que ela merece o título de 'rainha'? Só lembram dela a cada quatro anos", disse outro.
E ainda tivemos aquela história de que não é futebol.
"Parem com esse mimimi de 'preconceito'... Para quem assiste futebol mesmo, o nível é muito diferente ainda! A realidade não pode ser tratada de preconceito, aprendam a enxergar a realidade como realidade", escreveu mais um.
Todos estes comentários foram feitos em uma linha que se tornou a da crítica, mas não a construtiva, e sim a destrutiva. Mas, para deixar bem claro: a cobrança deve, sim, existir. Só que ela não pode ser confundida com "tiveram todo apoio e não ganharam nada". Sim, houve investimento. Mas só agora ele está acontecendo. Então, se não ganha, não investe? A boa e velha lógica do futebol masculino que só prejudica os demais.
É exatamente por isso que minha admiração por Marta, Adílson Maguila, Isaquias Queiroz, Vera Mossa, Oscar, Hortência, Jackie Silva, Paula, Rebeca Andrade, Paulão, Daiane dos Santos, Mayra Aguiar, Almir Junior, Maria Portela, Lucão, João Derly, Serginho, Sheilla, Aurélio Miguel e tantos outros é cada vez maior. Porque eles lutam contra uma lógica de um país que só enxerga os vencedores.
Se não tem título de Copa, como muitos exigem, a Seleção Brasileira feminina é uma das únicas a estar presente em todas as edições do Mundial, incluindo um vice em 2007, duas medalhas de prata olímpicas e três ouros pan-americanos. Aliás, elas já estão classificadas para os Jogos de Paris, em 2024, e a dor da eliminação na Austrália poderá trazer aprendizados para um futuro melhor. Que ela não seja o fim, mas o começo de um ciclo vitorioso.
Que o futebol feminino siga com apoio. Que todas as modalidades ganhem apoio. Porque não adianta cobrar de atletas e profissionais apenas quando eles perdem e comemorar quando eles ganham. O esporte vai além da simples distinção de vencedores e derrotados.