O fluxo intenso de caminhões nas rodovias gaúchas e o ronco constante dos motores das colheitadeiras retirando os grãos das lavouras prenunciam uma colheita de soja histórica no Rio Grande do Sul. Em 2021, até o final de abril, o Estado deve colher 20,2 milhões de toneladas da oleaginosa, segundo a Emater. O volume é recorde e representa avanço de 78,9% em relação a 2020, quando a estiagem derrubou a produção da principal cultura gaúcha de verão.
A combinação de safra cheia e preços aquecidos faz com que os produtores de diferentes rincões esbanjem otimismo poucas vezes visto. A saca está sendo negociada acima de R$ 160 mesmo em meio à colheita, patamar inédito. O cenário favorável começou a se desenhar com a semeadura de 6,07 milhões de hectares, a maior área já vista no Estado. Porém, para ultrapassar a inédita barreira dos 20 milhões de toneladas, um longo caminho foi percorrido.
Depois do tempo seco afetar a produção de grãos de verão do ano passado, a expectativa era atenuar prejuízos com a safra de inverno. No entanto, a ocorrência de geada, principalmente na metade Norte, frustrou a colheita das culturas da estação fria.
Mais adiante, na primavera, de novo a estiagem voltou a dar as caras. A falta de chuva prejudicou as lavouras de milho e trouxe apreensão quanto ao futuro da soja, que teve o plantio atrasado em cerca de duas semanas. A situação só foi revertida em janeiro, com o retorno das precipitações.
— Passamos por esses momentos de frustrações, mas continuamos na luta à espera de dias melhores. E eles vieram agora, com essa rica safra. Vamos recuperar os prejuízos que tivemos — comemora João César Dalla Corte Sobrinho, produtor de soja em Catuípe, no Noroeste.
Com quase 300 hectares da oleaginosa, Dalla Corte espera obter sua maior produtividade neste ano. Colherá, em média, 65 sacas (em torno de 3,9 mil quilos) por hectare. A cifra fica acima do desempenho gaúcho previsto para este ano, que está na casa das 55 sacas. Para efeito de comparação, no ano passado a estiagem derrubou a média do agricultor a 18 sacas. Com a receita obtida nesta safra cheia, ele pretende quitar dívidas e investir em maquinário novo.
Impacto
No Estado, a colheita chegou a 39% na semana passada. Tradicionalmente, nesta época mais de 60% da área costumava estar finalizada. O trabalho no campo se intensificou somente em abril, mas tende a terminar ainda dentro do mês. Os resultados das lavouras já colhidas trazem a sensação de alívio aos agricultores, destaca o presidente da Associação dos Produtores de Soja do Rio Grande do Sul (Aprosoja-RS), Décio Teixeira:
— Se tivesse outra perda, devido à estiagem, seria algo irremediável para o Rio Grande do Sul. Essa safra está excepcional, tanto pelo rendimento quanto pelo preço. O produtor vai colocar as contas em dia e investir para melhorar seu desempenho.
A principal cultura de verão provocará injeção recorde de dinheiro na economia gaúcha neste ciclo. O valor bruto da produção (VBP) da soja — montante a ser recebido pelos produtores a partir da comercialização do grão a preços de mercado — alcançará R$ 50,6 bilhões em 2021, de acordo com o Ministério da Agricultura, o que significa acréscimo de 104,1% frente a 2020 e de 68,5% em relação a 2019, última safra sem estiagem. Somente a oleaginosa responderá por 47% do VBP de toda a agropecuária do Estado, estimado em R$ 108,3 bilhões.
— Esta safra trará mais possibilidade de renda ao produtor. Ele não fez a lavoura com um custo tão alto como será na próxima safra, por causa do efeito do dólar nos insumos — destaca Paulo Pires, presidente da Federação das Cooperativas Agropecuárias do Estado (Fecoagro-RS), segmento que recebe metade da safra gaúcha de soja.
O diretor técnico da Emater, Alencar Rugeri, lembra que a produção gaúcha poderia ser ainda melhor, pois em algumas áreas a chuva foi escassa em fevereiro. Se em volume e em área a safra será recorde, em produtividade a colheita deste ano ainda perde para a de 2017. Ficará em 3.326 quilos por hectare, frente 3.385 quatro anos atrás.
— Tivemos uma largada de plantio muito ruim, em seguida veio uma recuperação fantástica a partir de janeiro, mas em fevereiro a situação mudou de novo. Se tivesse chovido um pouco mais naquele período, não tenho dúvidas de que romperíamos a barreira de produtividade de 2017 — afirma o diretor da Emater.
Ainda assim, Rugeri enfatiza que a safra de 2021 marca um ponto de inflexão: a soja gaúcha chegou a um novo patamar, no qual a tendência é de safras acima de 20 milhões de toneladas se tornarem cada vez mais comuns, e é questão de tempo para a produtividade atingir novo nível. O resultado passa pela disseminação da tecnologia nas propriedades.
Lavoura acima da expectativa inicial
Mesmo em lavouras que habitualmente figuram entre as mais produtivas do Estado, o resultado inicial da safra deste ano tem surpreendido positivamente. Administrando em torno de 9 mil hectares de soja em nove fazendas em Cruz Alta, no Noroeste, Maurício de Bortoli lembra que a semeadura foi conturbada, devido ao clima adverso na primavera, o que trouxe incertezas sobre o potencial produtivo. No entanto, após colher as primeiras áreas, as dúvidas ficaram para trás.
— As primeiras lavouras que colhemos estão com produtividade em torno de 10% maior do que a da última safra boa que tivemos, que foi a de 2019, e até 50% maior do que a da safra passada, quando tivemos a estiagem — compara Bortoli, produtor duas vezes campeão do Desafio Nacional de Máxima Produtividade de Soja do Comitê Estratégico Soja Brasil (Cesb), uma em área irrigada e outra em sequeiro, e que neste ano vai em busca do terceiro título.
Diretor da Sementes Aurora, Bortoli destina a maior parte da produção à elaboração de sementes. Por isso, tem mais de 30 cultivares de soja em suas lavouras. Desta maneira, a produtividade média tende a oscilar até o final da colheita. Ainda assim, o sojicultor calcula que é possível que a empresa registre seu melhor desempenho neste ano, com produtividade média na faixa de 75 sacas por hectare.
— Minha lavoura este ano é boa. Acredito que vou quebrar o recorde de nossa empresa, que foi de 73 sacas por hectare na safra 2018/2019 — projeta.
Com forte investimento em tecnologia, Bortoli salienta que o segredo da alta produtividade é ter uma visão de longo prazo. O sojicultor aponta que a criação de um sistema de produção eficiente leva anos e está atrelada a aspectos como qualidade do solo e de sementes e o manejo adequado na área plantada.
Preço firme durante a colheita
Quando a oferta de um produto no mercado aumenta, o preço tende a cair. Na safra de grãos de 2021, essa velha máxima da economia parece ter perdido força. Mesmo com a perspectiva de colheita recorde de soja no Rio Grande do Sul, a cotação da oleaginosa segue firme. Conforme a consultoria Safras & Mercado, em março a saca de 60 quilos foi negociada, em média, a R$ 169,02 na região de Passo Fundo. Frente a igual período de 2020, quando o valor era de R$ 92,02, há 83,7% de incremento.
Na comparação com a safra de 2019, última colheita cheia do Estado, a valorização da soja é ainda mais expressiva, alcançando 130%. Na ocasião, a saca era negociada a R$ 73,47. Analista da Safras & Mercado, Luiz Fernando Gutierrez Roque destaca que a forte demanda de exportação, a valorização da oleaginosa na Bolsa de Mercadorias de Chicago, nos Estados Unidos — neste ano passou a marca de US$ 14 por bushel pela primeira vez desde 2014 — e a forte desvalorização do real contribuem para manter o preço da commodity em alta no mercado brasileiro.
— Como a colheita está atrasada em algumas semanas, essa pressão da entrada da safra nos preços não apareceu de fato. Há espaço para a cotação cair, mas pouco, pois o que segura a cotação no momento é Chicago e o câmbio — avalia.
O cenário inédito de preços ao longo do último ano motivou a venda antecipada da safra. Antes mesmo da semeadura, agricultores já haviam negociado a produção futura de olho na remuneração atrativa. No Rio Grande do Sul, até março, quando a colheita começou, 41% da safra gaúcha estava comercializada — em torno de 8,2 milhões de toneladas. Roque enfatiza que esse índice é o maior já visto para uma temporada.
Remuneração
Com preços favoráveis neste ciclo, o sojicultor obterá uma das safras mais rentáveis que já existiu. Ainda que o dólar elevado, consolidado acima dos R$ 5 desde 2020, influencie preços de insumos e impacte o custo de formação da lavoura, a remuneração cresceu em ritmo ainda mais acelerado. É o que indicam os índices de inflação dos custos de produção e de preços recebidos pelos produtores gaúchos, calculados pela Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul (Farsul).
Segundo a mais recente edição do levantamento, referente a fevereiro, nos últimos 12 meses, os preços pagos ao produtor subiram 90,99%. Ao mesmo tempo, os custos produtivos acumulam alta de 14,57% no mesmo período. Na série histórica do indicador, desde 2011, uma diferença dessa magnitude a favor do produtor jamais havia sido registrada.
— Nem sempre quando o faturamento aumenta significa que a rentabilidade sobe. Neste ano, teremos as duas coisas. O produtor conseguirá ampliar receita e a rentabilidade. Por outro lado, são assustadores os aumentos de custos para a safra 2021/2022 — pondera Antônio da Luz, economista-chefe da Farsul.
Neste contexto, Luz estima que parte do lucro desta colheita será usado para a formação da lavoura das próximas safras. Levando em consideração os dados somente de 2021, a Farsul indica que os custos de produção aumentaram 7,02% e a remuneração ao agricultor avançou 7,31%. Isso significa que, mesmo com a manutenção da cotação da soja no atual patamar, a margem para a próxima safra tende a ser menor do que a verificada atualmente.