Engenheiros, meteorologistas, geólogos e outros profissionais: ao todo, 160 servidores ficam reunidos num mesmo prédio, em Florianópolis, analisando dados de satélites, fazendo estudos e projetando cenários. A edificação de quatro pavimentos, chamada de Centro Integrado de Gerenciamento de Risco e Desastres de Santa Catarina (Cigerd), foi inaugurada em 2018, dando maior estrutura aos profissionais que atuam para diminuir riscos e criar projeções.
O Estado catarinense é vigilante quando o assunto é fenômenos climáticos. A lição veio em meio à dor. Em novembro de 2008, após um período de muitas chuvas, inundações e deslizamentos, 135 pessoas morreram, 24 delas na cidade de Blumenau, no Vale do Itajaí.
— Nós tínhamos que reagir. Nós tínhamos que dar resposta. Nós estruturamos a Defesa Civil. Isso levou quase oito anos — destaca o diretor de gestão de desastres da Defesa Civil catarinense, Cesar Nunes.
Neste prédio, que recebeu investimento de R$ 44 milhões, uma sala de crise chama a atenção logo no primeiro piso. Ela conta com imagens de satélites mostrando a previsão do tempo, os níveis dos rios e oferece possibilidade de reunir integrantes da Polícia Militar, Bombeiros, Companhia Catarinense de Águas e Saneamento (Casan), Centrais Elétricas de Santa Catarina (Celesc), além de representantes da Defesa Civil. Dependendo da situação, poderá contar com servidores da Polícia Rodoviária Federal, Exército e quantos outras pessoas precisar.
Antes de reunir os agentes, porém, o Cigerd se certifica do que está por vir. Nos 2º e 3º andares da edificação, sete meteorologistas analisam a previsão do tempo, atentos a fenômenos como ciclones, chuva excessiva, e estiagem prolongada. Em casos considerados críticos, uma primeira reunião é realizada com os integrantes da equipe, traçando um planejamento para potenciais novos encontros. É neste momento que as unidades regionais da Defesa Civil são integradas e as prefeituras avisadas. Geólogos e hidrólogos projetam o que está por vir e analisam as áreas de risco, previamente mapeadas pelos servidores municipais.
Um exemplo para solucionar problemas de forma rápida se deu por conta da cobrança e pressão sobre a companha de luz catarinense, Celesc. Foi a partir dessa pressão que, atualmente, o tempo de desligamento da rede seja uma das menores do país, em torno de 3h a 4h até o restabelecimento. Em parte, porque a empresa tem cadastrado empresas e profissionais terceirizados que serão acionados em caso de emergência. Hoje, quando cai a energia, o aplicativo da Celesc informa o tempo que a região atingida ficará sem iluminação. Na avaliação dos integrantes da Defesa Civil, as instituições perceberam suas dificuldades e passaram a responder com mais precisão.
— Quando os desastres começam a trazer prejuízos, um plano de contingência adequado é eficiente para combatê-los. O despreparo deflagra prejuízos. Diversas instituições chegam até a gente para fazer um plano de contingência neste sentido — destaca o gerente de operações da Defesa Civil de Santa Catarina, geógrafo Rodrigo Nery e Costa.
Estrutura
Até no pátio do Cigerd é possível perceber o preparo para crises. O centro conta com uma van foi estruturada como posto de comando, com acesso remoto via satélite e rádio comunicador para casos de temporais. Essa possibilidade contrasta com o que se verificou no Rio Grande do Sul recentemente, por exemplo, quando a Polícia Civil pretendia estender o serviço da delegacia de Muçum, que foi afetada pela chuva de setembro, para um ônibus. Sem ar-condicionado no veículo, os servidores precisaram buscar abrigo no Centro de referência a Assistência Social (Cras) do município.
Prefeituras treinadas
Muitas das dificuldades que o Rio Grande do Sul enfrentou nos últimos temporais estão ligadas à falta de planejamento prévio, definição de competências e uso das informações disponíveis.
— Tem que dar serviço completo, e não só informar por mensagem. É preciso apresentar ao morador rotas de fuga, dar treinamento e oferecer a eles adoções de comportamento de auto-proteção — destaca o diretor de gestão de desastres da Defesa Civil catarinense, Cesar Nunes.
Conforme o artigo oito da Lei 12.608, de 2012 regulamentada pelo Decreto 10.593, de 2020, cabe às prefeituras fazer planejamento urbano e previsão de cenários futuros. As prefeituras precisam executar a política nacional de proteção e defesa civil, coordenar ações, identificar e mapear áreas de risco, fiscalizar, não permitir ocupações dessas áreas, fazer evacuações quando for necessário, organizar e administrar abrigos provisórios deixando-os em condições de higiene e segurança, manter a população informada sobre áreas de risco e ocorrência de eventos extremos, executar simulados regularmente, prover soluções de moradia temporária às famílias atingidas, entre outras ações.
Radares próprios
Além dos acessos aos radares meteorológicos oferecidos no Brasil, Santa Catarina conta com quatro equipamentos próprios. Eles estão instalados nas cidades de Joinvile, Lontras, Araranguá e Chapecó. Cada um custou R$ 10 milhões e tem raio de atuação de 120 quilômetros.
Ao todo, sete meteorologistas atuam no Cigerd procurando por formações de nuvens, ventos, grande quantidade de chuva, granizo, frio, onda de calor ou estiagem. Essa equipe, por exemplo, conseguiu identificar com antecedência a chuva que caiu no Vale do Taquari em 4 de setembro. Às 14h daquela segunda-feira, profissionais catarinenses alertaram os gaúchos sobre o que ocorreu.
Níveis dos rios
Na maior cheia desde 1941, Porto Alegre não conseguiu contar com o sistema da Agência Nacional de Águas que divulga o nível dos rios. Por um período, a capital gaúcha não soube qual era a altura do Guaíba.
Em Santa Catarina este risco de desconexão não existe. Primeiro porque o Estado vizinho não depende do sistema nacional. Mais de uma dezena de rios são monitorados exclusivamente pelo governo. A informação é conferida em tempo real na tela do Cigerd a partir de Florianópolis. Se houver algum problema com o sistema automático, câmeras voltadas para a régua de medição de cada um dos rios podem ser consultadas. Se tudo isso falhar, a leitura é feita no local.
Áreas de risco
A Defesa Civil catarinense investe também na contratação de geógrafos. Com as informações, disponíveis, foi possível criar um mapa com as áreas de risco do Estado.
A partir dos dados sobre volumes de chuva, os terrenos são analisados sobre possibilidade de deslizamentos de terra, quedas de barreira e enxurradas. Quando há previsão de chuva mais expressiva para regiões sensíveis, um alerta de deslizamento é enviado e os municípios precisam agir, evitando ou minimizando perdas.
Defesa Civil em ação
Somente em 2022, Santa Catarina registrou 865 desastres, como alagamentos e ciclones. Quando a tragédia chega, e as prefeituras solicitam apoio, a Diretoria de Gestão de Desastres da Defesa Civil entra em ação. Para que isso ocorra, o prefeito do município já precisa ter decretado emergência ou calamidade pública, um ofício precisa ser endereçado à Defesa Civil e a assistência social do município já precisa encaminhar uma lista de pessoas a serem beneficiadas.
— Quando se retiram pessoas das suas casas, é preciso colocá-las em lugar protegido. Neste local, é preciso ter lugar para dormir, ter o que comer. E a responsabilidade sobre isso é dos municípios — informa a gerente de assistência humanitária da Diretoria de Gestão de Desastres, Renata Gaia.
Kits de higiene, alimentação e limpeza, além de telhas, lonas, podem ser rapidamente distribuídos aos municípios atingidos, por conta de uma organização que começa antes. Todo ano, a diretoria monta uma espécie de estoque virtual de produtos. Somente em 2022, foram R$ 18,6 milhões em kits. Para ter essa reserva, as empresas são contratadas pela Defesa Civil, e se comprometem a vender 26 tipos de produtos, armazená-los em estoque e entregá-los quando necessário.
Em dezembro do ano passado, por exemplo, a cidade de Santo Amaro da Imperatriz foi atingida por uma enchente. Uma das empresas cadastradas contava com os kits-alimentação que a Defesa Civil precisava. Mesmo assim, foi possível entregar, no prazo de 24 horas, produtos que estavam sendo requisitados em outra cidade, algo que só foi possível por causa da logística estabelecida, que envolveu batedores da polícia.
Pontes provisórias
O Cigerd conta, até, com material para construir pontes em situações emergenciais. Isso é possível após a reinauguração, em 2019, da ponte Hercílio Luz, em Florianópolis, que permitiu o aproveitamento de aço comprado e não utilizado. A partir de um pedido da Defesa Civil, o material foi destinado para o centro, pintado e cortado em estruturas de até nove metros. Com essas partes, é possível criar pontes provisórias para regiões afetadas por desastres climatológicos. A única coisa que fica por conta das prefeituras é a construção de pilares das cabeceiras.
Há opção também para estruturas em concreto. Esse material, no entanto, tem um caminho distinto, já que é comprado pela Defesa Civil e repassado aos municípios. Em 2023, 115 kits de concreto foram distribuídos. Mediante apresentação de documentação adequada, prefeituras podem restabelecer ou reconstruir um acesso devastado em até seis meses.
Construção de barragens
Depois do desastre de 2008 que atingiu o Vale do Itajaí, o governo catarinense traçou um planejamento para construção de 11 barragens no Rio Itajaí-Açu, para controlar o fluxo de água. O volume de água que o rio captava causava problemas nas cidades do Vale do Itajaí, com inundações já tendo causado mortes e prejuízos materiais.
Em 2018 foi possível inaugurar a primeira estrutura. Até agora, três estão em funcionamento, no Rio Perimbó, Rio Taió e no Ribeiro Braço do Trombudo. As barragens servem como instrumento para reduzir as cheias nas áreas mais baixas, diminuindo o volume ao longo do percurso do rio. Além da construção, meteorologistas monitoram diariamente as estruturas.
Regionais espalhadas
Além do QG central, em Florianópolis, a Defesa Civil tem 20 regionais no Estado de Santa Catarina em diferentes sedes. Cada uma delas abrange 10 municípios e tem 70 atribuições. São estas regionais que fazem articulação entre municípios e central, em Florianópolis.
— Se realmente é confirmado o alerta, na captura dos dados de danos começamos a trabalhar. O município vai abastecendo a regional. A gente consegue ver a evolução do evento. Também vemos o intervalo de resposta e apoio ao município - descreve Maykel Campestrini, que é coordenador regional da Defesa Civil do Médio Vale, que agrega 14 municípios.
Cidade que investe
Nos seus 173 anos de história, a cidade de Blumenau, no Vale do Itajaí, já contabilizou 95 enchentes. A mais grave, de 2008, foi a causa para originar a Secretaria Municipal da Defesa Civil.
— Hoje, a enchente é o evento mais fácil de se fazer gestão. Todo ano fazemos simulados com comunidade, que sabem a hora de sair de casa — descreve o secretário Carlos Olimpio Menestrina.
Para convencer as pessoas a saírem de casa, a Polícia Militar conta com lanchas, que além de permitir o resgate dos moradores, é usada para fazer patrulhamento para evitar furtos em residências em casos de enchentes. Além disso, desde 2015, a prefeitura conta com um aplicativo chamado de AlertaBlu. que fornece informações e serviços para a população em caso de chuva forte, enchentes e deslizamentos. Em breve, seus usuários poderão receber informações sobre rotas de fuga em caso de alagamentos.
A cidade também conta com um sistema de meteorologia próprio, que projeta riscos de chuva intensa, deslizamentos e enchentes. As 18 redes de estações têm 16 pluviômetros, compondo um sistema que mede o nível do rio, além de um radar meteorológico.
Ajuda de voluntários
Em 2008, Gaspar, no Vale do Itajaí, que tem 73 mil habitantes, não contava com unidade municipal da Defesa Civil. Na tragédia daquele ano, 20 pessoas morreram e uma segue desaparecida até hoje por causa da cheia do Rio Itajaí-Açu, que causou enchentes e deslizamentos.
Em 2009, a partir da criação da estrutura, a mobilização foi iniciada. Até 2019, porém, somente duas pessoas trabalhavam na Defesa Civil municipal. Apesar do efetivo reduzido, vistorias foram iniciadas, e foi criado um projeto que envolveu voluntários treinados para ajudar em períodos de anormalidade. Um engenheiro e um geólogo passaram se somaram à equipe, que hoje tem as quatro pessoas supervisionadas por uma profissional.
Ao todo, 70 voluntários estão divididos em 3 grupos: ajuda em abrigos, trabalho de campo e atendimento ao telefone 199. A cidade contava com nove pluviômetros que, sem manutenção, não funcionavam. Em 2021, veio a ideia de pluviômetros manuais, com moradores recebendo os instrumentos em casa.
Hoje, 22 aparelhos estão instalados em todos os bairros da cidade. Quando chove, os voluntários avisam a Defesa Civil. O microempresário André Leonardo Daros, 34 anos, é um dos primeiros voluntários que a cidade teve.
— No verão de 2023 choveu 150 milímetros em dois dias — lembra ele, sendo que a média para dezembro é de 360mm e para janeiro cerca de 260mm.
Com base nestes dados a prefeitura descobriu que no bairro Belchior chovia mais que nos demais. Por causa disso, sempre que há um aviso de chuva excessiva, a Defesa Civil monta alertas para essa região. Entre as outras medidas, estão mapeamento de risco para deslizamentos e proibição de novos loteamentos sem a consulta prévia à Defesa Civil.
Lei da ajuda mútua
Em janeiro de 2023, o município catarinense de Rodeio registrou chuva intensa que interditou as duas entradas e saídas. Mais de 140 das 230 vias do município ficaram obstruídas ou parcialmente destruídas. Em pouco tempo, a partir do acionamento da Defesa Civil, foi possível limpar a cidade, com 90% das ruas desobstruídas em quatro dias.
Essa agilidade também é explicada por meio da Lei da Ajuda Mútua. Nas cidades onde essa legislação já foi aprovada nas Câmaras de Vereadores, as prefeituras conseguem fornecer equipamentos para municípios que decretarem estado de calamidade ou situação de emergência, o que permite direcionar maquinário e servidores de forma mais ágil.
Exemplo que vem da escola
De olho no passado, a Defesa Civil catarinense também olha para a frente. Vê nas crianças a forma mais eficaz em preparar a população para os eventos climáticos que se intensificam.
Desde 2013, o programa Defesa Civil na escola capacita professores e ensina estudantes das redes públicas municipal, estadual e privada. A partir de 2021, o projeto virou ação oficial de Estado. Alunos do 6° ou 7° ano aprendem conhecimentos gerais sobre desastres naturais, eventos adversos e conhecem a estrutura da Defesa Civil.
— Os alunos recebem avisos e treinamento na escola. Os que passam de ano, no ano seguinte, viram multiplicadores das ações para os (alunos) mais novos — destaca a gerente de pesquisa e extensão da Defesa Civil catarinense, Regina Panceri.
A prova da mobilização é que o desastre que atingiu o Vale do Taquari recentemente mobilizou estudantes de várias escolas. Foram montados pontos de coleta de arrecadação de doações. Em Xanxerê, no oeste catarinense, além das doações, alunos confeccionaram mensagens para os gaúchos.
"Vocês merecem tudo de bom. Deus estará sempre com vocês. E Deus dará muita força para vocês. Amém", dizia um dos bilhetes confeccionados por um estudante. "Não fiquem preocupados. Porque tudo vai melhorar. Que Deus esteja sempre com vocês", pedia um segundo estudante.
Até agora, 38 mil alunos, de mais de 600 escolas, já participaram do programa e 1,9 mil professores fizeram o curso de capacitação, de 80h, no formato online. Na última semana de setembro, representantes de três Estados – Rondônia, Ceará e Piauí – buscaram informações para implementar o projeto nas suas regiões.
Defasagem brasileira
Um diagnóstico publicado pelo Ministério do Desenvolvimento Regional, no ano de 2021, aponta a dificuldade enfrentada pelas estruturas municipais da Defesa Civil no país. Ao todo, 4.912 municípios brasileiros foram afetados por desastres entre 2013 e 2020.
Uma pesquisa foi realizada com quem faz o atendimento das ocorrências nas cidades. Representantes de 59% das 1.993 Defesas Civis existentes no Brasil afirmaram contar com no máximo duas pessoas para atender vítimas dos desastres. Na Região Sul, as principais dificuldades são: falta de recursos financeiros (25%), falta de equipe ou recursos humanos (24%) e falta de equipamentos (17%).