Como uma reunião de condomínio, as COP (sigla em inglês de “Conferência das Partes”, da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas) costumam, por vezes, ser enfadonhas, cheias de abreviaturas, termos técnicos, jargões e linguagem diplomática. Mas, também como nas reuniões em nossos prédios, quem não comparece fica de fora de acertos importantes sobre o convívio com os vizinhos. Pior: delega a outros as decisões, sem poder reclamar depois.
A partir deste domingo (6/11), o “condomínio mundo” se reúne no balneário egípcio de Sharm el-Sheikh, entre o deserto da Península do Sinai e o Mar Vermelho, para discutir, na COP27, medidas que impeçam o aumento da temperatura do planeta acima de 1,5ºC em relação aos níveis anteriores à Revolução Industrial. Essa marca é considerada por cientistas o ponto de não retorno, com efeitos devastadores para a vida na Terra.
A COP27 era para ser mais uma dessas reuniões anuais entre centenas de chefes de Estado, ministros de Meio Ambiente, técnicos, pesquisadores e integrantes de organizações não governamentais. Não tem o brilho da Rio92, a primeira iniciativa da ONU sobre o aquecimento global, ou da COP3, no Japão, quando surgiu o Protocolo de Kyoto, com metas de redução para gases de efeito estufa. Também não dispõe do glamour da COP15, de Copenhague, quando houve a consolidação do tema climático nas agendas públicas, corporativas e da sociedade civil, nem da aclamada COP21, de Paris, quando a assinatura do acordo que leva o nome da cidade estabeleceu o compromisso dos governos de estabilizar o aquecimento global bem abaixo dos 2ºC.
A COP27, que vai até o dia 18, era vista como apenas de implementação do Acordo de Paris. Ou seja, de ajustes para que cada um dos 193 países signatários adote aquilo que foi acertado em 2015. No “livro de regras”, espécie de ata condominial, um dos itens que faltam é a finalização das normas do artigo 6º, que trata de instrumentos do mercado de carbono. Uma reunião de rotina, digamos assim. Mas, ainda na metáfora da assembleia de condomínio, há uma espécie de “chamada extra” – aquela que desperta a atenção de todos, mexe no bolso dos condôminos, no caso governos, e atrai até aqueles vizinhos normalmente pouco interessados nas discussões.
É que, nessa esquina tumultuada da História, em que a temperatura do planeta segue em elevação e as relações internacionais estão conturbadas pós-pandemia, apareceu a guerra na Europa. Em 24 de fevereiro, a Rússia invadiu a Ucrânia, produzindo destruição, mortes e a maior onda de refugiados no continente deste a Segunda Guerra Mundial. Além da tragédia que todo conflito provoca, há efeitos colaterais na economia relacionados ao ambiente.
As sanções impostas pelo Ocidente ao país de Vladimir Putin foram retaliadas com a redução do envio de gás natural para a Europa. Às vésperas do início do inverno no Hemisfério Norte, o continente pode congelar – e as indústrias, pararem – até que o russo reabra as torneiras do gás.
A crise energética tomou de assalto as discussões da COP27. Se, por um lado, a dependência europeia do gás, um combustível fóssil, reforça a necessidade de acelerar ainda mais a mudança da matriz energética para fontes renováveis, como solar e eólica, por outro, o medo de paralisação da economia fez muitos países europeus reativarem usinas termelétricas, movidas a carvão e ainda mais prejudiciais ao ambiente.
– Mesmo que em um primeiro momento você comece a queimar tudo o que dá, no médio e longo prazos há preocupação de países se tornarem menos dependentes dessas fontes fósseis – pontua a professora Suzana Kahn Ribeiro, do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa em Engenharia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), centro de pesquisa de referência na área ambiental.
Essa preocupação é compartilhada pelo presidente da Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul (Fiergs), Gilberto Petry.
– Tudo é muito legal quando está funcionando, mas na hora em que a coisa aperta... Na hora em que esfria a casa, o cara não vai estar preocupado com Mariupol (cidade ucraniana bombardeada na guerra), vai estar preocupado com a casa dele – define.
Outro efeito colateral do conflito é o risco de insegurança alimentar. A guerra desestabilizou a cadeia de fornecimento de alimentos importantes, como o trigo. Em 2020, segundo o Fórum Econômico Mundial, 36 países compraram mais de 50% do trigo importado da Rússia ou da Ucrânia. Para essas nações, muitas delas pobres, as dificuldades nos embarques da commodity, em decorrência dos combates, afetaram diretamente a oferta – não apenas com a disparada dos preços, mas também a disponibilidade do produto.
Um relatório da organização humanitária Welthungerhilfe aponta o conflito na Ucrânia como acelerador da pobreza, em um mundo onde mais de 800 milhões de pessoas passam fome. A situação é especialmente extrema no Afeganistão, Sudão do Sul e Iêmen.
Em outras palavras, a COP27 deixou de ser “apenas” sobre como evitar o aquecimento global. Mas fiquemos, por ora, nesse quesito. Apesar dos esforços, o saldo da COP26, na Escócia, em 2021, não foi satisfatório. No Pacto Climático de Glasgow, os países concordaram em se empenhar para mitigação nas NDCs (sigla para Nationally Determined Contribution), a fim de conter o aumento da temperatura global por meio da redução das emissões de gases de efeito estufa em 45% até 2030 em relação a 2010.
Mas estamos longe de chegar a essa ambição. O relatório do IPCC, em fevereiro, trouxe novos dados preocupantes: os cientistas detalharam que as temperaturas mais altas estão levando a “extremos compostos”. Isto é, quando várias ameaças climáticas, como temperaturas extremas e chuvas além do normal, ocorrem ao mesmo tempo e no mesmo lugar repetidas vezes. Um exemplo de efeitos das altas temperaturas constantes pode ser a redução da umidade do solo, que afeta o crescimento das plantas, diminuindo as chuvas e levando a mais estiagens.
O Pacto de Glasgow convocou os países a acelerar as tecnologias de políticas de transição energética, incluindo os esforços para reduzir a participação do carvão e eliminar subsídios para combustíveis fósseis, e convidou também à redução das emissões de metano até 2030. A conflituosa relação entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, grosso modo entre ricos e pobres, está no centro dessas divergências. O pano de fundo é: quem vai “pagar a conta” da descarbonização e dos custos e estragos das mudanças climáticas?
O fato de a COP27 ser realizada em um país da África, continente com muitas nações pobres, torna o evento vitrine para as necessidades dessas populações, apartadas de desenvolvimento. Além de não terem dinheiro para energias limpas – e uma sensação de injustiça, afinal, os países desenvolvidos só chegaram a tal nível porque poluíram o ambiente com suas fábricas –, algumas dessas nações são as primeiras a sofrer com eventos extremos, como furacões, secas e inundações, conforme a professora Suzana:
– Espera-se que muitas das questões estarão voltadas ao fundo de adaptação e financiamento climático, até hoje mal resolvidas. Os países acordaram em fornecer milhões para esse fundo, mas poucos realmente auxiliam.
Economias emergentes, como a China, fincam pé no princípio das “responsabilidades comuns, porém diferenciadas”, segundo o qual há uma responsabilidade histórica dos países desenvolvidos pela mudança do clima – e que, portanto, devem assumir a liderança no processo de descarbonização global. O compromisso desses países de doar US$ 100 bilhões anuais em financiamento climático a nações em desenvolvimento mais afetadas pela crise climática não foi cumprido.
Olhos para o Brasil
É com expectativa que a COP27 mira o Brasil, após a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva na eleição. Sob anonimato, diplomatas afirmam que o país passou, em 24 horas, de pária internacional em temas ambientais a “influencer” global. Logo após o pleito, Lula conversou com líderes mundiais para os quais o aquecimento global é prioridade, como os presidentes Joe Biden (EUA) e Emmanuel Macron (França), o chanceler Olaf Scholz (Alemanha) e o primeiro-ministro Pedro Sánchez (Espanha).
Convidado pelo presidente do Egito, Abdel Fattah el-Sisi, e pelo consórcio de governadores da Amazônia Legal, o presidente eleito decidiu ir a Sharm el-Sheikh na fase quente, entre 14 e 18 de novembro, uma oportunidade para se encontrar com Biden. Bolsonaro, que não viajará, será representado pelos ministros Joaquim Leite (Meio Ambiente), Marcos Montes (Agricultura) e Carlos França (Relações Exteriores).
Desde seu programa de governo até os discursos após a vitória, Lula tem mostrado que deseja inserir o Brasil na arena global. No primeiro mandato do petista, a presença de Marina Silva, então ministra do Meio Ambiente, em diferentes COP era saudada por ambientalistas. Antes mesmo da vitória de Lula neste ano, ela já confirmara presença no Egito.
As emissões de gases causadores do efeito estufa do Brasil tiveram em 2021 sua maior alta em 19 anos, segundo relatório divulgado na terça-feira pelo Observatório do Clima. O recorde é catalisado pela energia, pela pecuária e, principalmente, pelas taxas recordes de desmatamento na Amazônia – em 2021, a destruição dos biomas brasileiros poluiu mais a atmosfera do que todo o Japão.
No ano passado, o Brasil emitiu 2,42 bilhões de toneladas brutas de CO2, conforme o documento. O volume representa 3% das emissões planetárias, atrás apenas de China, EUA, Índia e Rússia. Foi o quarto ano consecutivo que o número aumentou, algo inédito desde que a série histórica começou, em 1990. Só não é maior do que o de 2003, quando o país viu suas emissões crescerem inéditos 20% devido ao desmatamento na Amazônia.
– O desmatamento é nosso calcanhar de Aquiles, os dados estão sempre aumentando. São aspectos negativos que a gente leva para a COP27. No aspecto positivo, há o aumento de energias renováveis, sobretudo eólica, altamente competitiva, mais barata do que uma usina térmica. A implementação de energia solar também está crescendo muito – constata Suzana.
A COP27 pode ser o ponto de virada para o Brasil e exigirá um trabalho de cooperação técnica e coordenada entre Estado e setores econômicos – energia, agronegócio, transporte, infraestrutura e logística –, que devem equacionar as especificidades de cada setor às metas das NDCs, o aproveitamento de recursos naturais e a estrutura jurídica vigente.
Em Glasgow, o Brasil anunciou o compromisso de mitigar 50% de suas emissões de gases de efeito estufa até 2030. Além da nova meta, o Ministério do Meio Ambiente apresentou o documento Diretrizes para uma Estratégia para Neutralidade Climática, com medidas e ações adicionais a serem adotadas e os respectivos resultados esperados. Entre as principais, estão:
- Reduzir o desmatamento ilegal, a partir de 2022, em 15% por ano até 2024, 40% e, 2025, e 50%, em 2027, atingindo a meta de zerar o desmatamento ilegal em 2028.
- Restaurar e reflorestar 18 milhões de hectares de florestas, para múltiplos usos, até 2030.
- Alcançar uma participação estimada entre 45% e 50% de energias renováveis na composição da matriz energética em 2030 e seguir expandido.
O atual governo planeja driblar a imagem pejorativa do Brasil, recordista em emissões de gases do efeito estufa, aproveitando-se da crise energética desencadeada pela guerra na Ucrânia para promover o país como expoente da energia limpa. O Ministério do Meio Ambiente planeja um megasestande, de 300 metros quadrados, em parceria com as Confederações Nacionais da Indústria e da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNI e CNA), a Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex) e o Sebrae. A instalação ficará em frente ao espaço dos governadores na Zona Azul – área onde ocorre as negociações entre países – e perto do lugar onde ficarão as organizações da sociedade civil. O pavilhão está a cargo da empresária Eliana Azeredo, diretora da Capacità Eventos, que venceu a licitação para o projeto.
– Como brasileira e gaúcha que acabou vindo, para cá é muito importante – conta Eliana, que já está no Egito. – Dentro do nosso espaço, haverá agenda de ministros, da Apex, da CNI, mas tem toda uma equipe técnica que está vindo fazer o paralelo das negociações mesmo. Fecho o estande às 22h, mas há gente que sai do espaço à 1h ou às 2h da manhã, porque está nessas negociações periféricas – explica.
Não podemos aceitar ataques à agricultura brasileira que, no fundo, representam competição comercial. Sabemos que há problemas climáticos, mas o Brasil, por ser uma potência agrícola, ecológica e energética, é parte da solução do problema.
GEDEÃO SILVEIRA PEREIRA
Presidente da Farsul
Além desse estande “oficial”, o Brasil terá dois outros, da sociedade civil e centros de pesquisa, e, pela primeira vez, de um consórcio dos governadores da região amazônica, que não quiseram ficar ao lado do governo Bolsonaro. A CNA apresentará ações da agropecuária brasileira que conciliam produção de alimentos com sustentabilidade ambiental.
– Vamos apresentar o Brasil sob a ótica do balanço de sequestro de carbono. Nossa agricultura, na nossa visão, sequestra mais do que emite. Não podemos aceitar ataques à agricultura brasileira que, no fundo, representam competição comercial. Sabemos que há problemas climáticos, mas o Brasil, por ser uma potência agrícola, ecológica e energética, é parte da solução do problema – defende Gedeão Silveira Pereira, presidente da Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul (Farsul), que integra a delegação da CNA no Egito.
Na opinião do dirigente, a disputa comercial e posições ideológicas aparecem, por vezes, travestidas de proteção ao ambiente. A avaliação é compartilhada é pelo presidente da Comissão Nacional de Meio Ambiente da CNA, Muni Lourenço:
– Vamos com toda a forca (ao Egito), porque sabemos da importância da COP e que determinadas medidas de cunho aparentemente ambiental podem ser motivo de barreiras não tarifárias, medidas protecionistas de mercado.
Nosso país tem desafios, lógico, como nação em desenvolvimento, mas estamos em posição de liderança em termos de práticas agropecuárias sustentáveis. O produtor rural brasileiro está absolutamente consciente de sua responsabilidade em relação à sustentabilidade.
MUNI LOURENÇO
Presidente da Comissão Nacional de Meio Ambiente da CNA
Para Muni, a ideia é apresentar o Brasil como potência agroambiental e energética:
– Nosso país tem desafios, lógico, como nação em desenvolvimento, mas estamos em posição de liderança em termos de práticas agropecuárias sustentáveis – explica. – O produtor rural brasileiro está absolutamente consciente de sua responsabilidade em relação à sustentabilidade e cada vez mais nosso agro está se posicionando como parte da solução da questão das mudanças climáticas e sustentabilidade ambiental.
Davi Bontempo, gerente-executivo de Meio Ambiente e Sustentabilidade da CNI, destaca que, no debate sobre transição para economia de baixo carbono, o setor busca expandir energias renováveis.
– As vantagens comparativas a gente já tem: matriz energética elétrica bastante limpa, segundo maior produtor de biocombustível, a gente concentra biodiversidade. Temos vantagens que, tratadas adequadamente, com segurança jurídica e regras claras, irão proporcionar atração de investimento, gerar renda, riqueza e fomentar a geração de empregos verdes – afirma Bontempo.
A reflexão é compartilhada pelo presidente da Fiergs, Gilberto Petry, para o qual os dias 15 e 16 serão de destaque do Brasil na COP27.
– O Brasil continua sendo grande protagonista na agenda ambiental, porque temos um potencial muito grande para contribuir na questão do clima. No Rio Grande do Sul, temos energia solar, eólica, off shore e nitrogênio verde. Estamos bem. Vamos continuar nesse esforço para tentar zerar o carbono nas emissões industriais – promete.
Em busca de paz
A questão climática é uma janela que o futuro governo pode usar para ganhar protagonismo internacional, em um tabuleiro geopolítico no qual China e Estados Unidos travam um duelo de titãs pela hegemonia mundial no campo econômico e Rússia e Ocidente lutam, por procuração, na guerra na Ucrânia.
Na questão energética e alimentar, pano de fundo das preocupações da COP, o Brasil precisa, na visão de diplomatas ouvidos sob anonimato, buscar, de novo, o pragmatismo histórico da Casa de Rio Branco. Ou seja, não se indispor com parceiros comerciais – como os grandes antagonistas nessa arena internacional, Estados Unidos, China e Rússia, esses dois últimos parceiros do Brics, bloco criado nos governos do PT. Por isso, o ambiente seria um caminho estratégico.
Outro ponto favorável para Lula abrir trincheira nesse quesito é a imagem pejorativa do Brasil lá fora hoje em dia. A questão ecológica foi a que mais arranhou a cara do Brasil no Exterior nos últimos anos. Seja em razão da falta de políticas do governo Bolsonaro na área, seja devido aos índices crescentes de desmatamento, concretizado em imagens de florestas em chamas, que ganharam manchetes internacionais. Houve ainda as mortes do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, que escancararam a ação de grileiros em áreas como a Amazônia.
Há planos de Lula se encontrar, ainda este mês, com o secretário-geral da ONU, António Guterres, para o lançamento de uma iniciativa internacional de combate a mudanças climáticas. A ação é música a ecoar pela Casa Branca, pelos jardins e pelo Salão Oval de Biden. A Noruega retomará a ajuda financeira contra o desmatamento no Brasil, congelada durante a presidência de Bolsonaro. Junto com a Alemanha e a Petrobras, em menor escala, o país escandinavo é o maior contribuinte para o Fundo Amazônia, que tinha o objetivo de auxiliar no combate ao desmatamento e no desenvolvimento sustentável. No Brasil, o desmatamento é a maior fonte de emissões de gases estufa. Para cumprir seus objetivos, acertados no Acordo de Paris, o país precisa reduzir drasticamente o desmatamento na floresta.
Essas são questões que o “condomínio mundo” tem urgência: o planeta tem até 2025 para frear emissões de CO2, segundo o IPCC. A guerra na Ucrânia piorou a crise energética e alimentar. E até 2050 quase 1 bilhão de pessoas viverão em áreas costeiras sob risco de submersão. A sensação é de pressa. Se os sucessivos alertas e dados de pesquisadores não sensibilizaram governantes, a pandemia de covid-19 evidenciou que, sem ação conjunta, a economia global e a saúde da humanidade vão colapsar.