Um leilão de áreas destinadas à extração de petróleo em alto-mar entre Rio Grande do Sul e Santa Catarina, previsto para ocorrer em outubro, aproxima o Estado de uma nova fronteira de exploração do combustível no país e alimenta expectativas de ganhos econômicos.
Documentos de órgãos ambientais do governo federal, porém, indicam riscos ecológicos e falta de informações mais detalhadas sobre o impacto da atividade nos blocos oceânicos a serem oferecidos este ano, ao mesmo tempo em que os gaúchos não deverão receber valores significativos de royalties (compensações financeiras) se e quando houver produção decorrente dessa etapa do cronograma de leilões. Ambientalistas pretendem recorrer até à Justiça para barrar a iniciativa do governo federal.
A 17ª rodada de licitações dessas áreas marítimas, onde se acredita haver petróleo em níveis mais próximos da superfície do que no pré-sal, prevê a oferta de 92 blocos distribuídos entre quatro bacias sedimentares brasileiras. Uma delas é a de Pelotas, que se estende desde a fronteira com o Uruguai até o sul de Santa Catarina.
A licitação de outubro vai disponibilizar ao mercado áreas mais próximas ao litoral sul catarinense, em três setores identificados pelas siglas SP-AR1, SP-AP1 e SP-AUP1 (veja detalhes no mapa logo abaixo). A localização de parte desses pontos, a cerca de 200 quilômetros da costa de Torres, deixa o Rio Grande do Sul em uma situação pouco favorável: são próximos o suficiente para o Estado temer os riscos ambientais, mas não para usufruir da maior parte dos lucros em caso de sucesso na exploração.
Embora visualmente parte dos blocos a serem concedidos se alinhe à costa do Rio Grande do Sul, nenhuma cidade gaúcha aparece na lista de "municípios confrontantes" elaborada pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). São esses municípios que garantem participação polpuda nos royalties pela maior proximidade com os pontos de extração.
Procurada por GZH, a ANP informou por meio de nota que o "critério de confrontação" (ou seja, a qual cidade corresponde cada trecho do mar) é estabelecido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) com base em "linhas de projeção ortogonais e paralelas sobre os limites territoriais dos Estados e municípios". Na prática, isso significa que a divisa imaginária entre Rio Grande do Sul e Santa Catarina não segue uma reta paralela à Linha do Equador (veja no mapa).
Em vez disso, o IBGE leva em conta os recortes no desenho geográfico costeiro para traçar os "limites" municipais e estaduais sobre a água. O limite do "mar gaúcho", assim, segue uma trajetória descendente rumo a Sudeste. Por esse motivo, o Rio Grande do Sul teria de se contentar, no máximo, com compensações secundárias previstas para cidades próximas ou indiretamente afetadas por eventuais impactos desse tipo de atividade. Ainda não é possível confirmar o direito a esses benefícios ou estimar sua dimensão, mas costumam ser de pouca monta.
— Fora dos municípios confrontantes, diminui muito o valor (dos royalties). Cidades consideradas confrontantes podem receber milhões de reais por ano. Nas que não são, isso pode ficar em alguns milhares por ano — compara o ex-diretor-geral da ANP (entre 2016 e 2020) Décio Oddone, em cuja gestão avançou o planejamento da 17ª rodada de licitações.
A ANP informou ainda que "ainda é muito cedo para previsões de geração econômica", porque é preciso "a prévia descoberta e o desenvolvimento de um campo de petróleo ou gás natural". Há indícios de que há combustível na Bacia de Pelotas, mas ainda não houve a chamada descoberta comercial do produto, ou seja, quando ele é efetivamente encontrado.
— O potencial é bom, mas não houve descoberta ainda. Se houver, além de royalties, o Estado poderia se beneficiar por uma eventual utilização do porto de Rio Grande, por exemplo — afirma o professor do Departamento de Mineralogia e Petrologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Luiz Fernando de Ros.
Para o sócio-fundador da empresa de consultoria MaxiQuim, João Luiz Zuñeda, as incertezas não devem desestimular a busca do combustível na costa sul-brasileira:
— A prospecção geológica indica que há petróleo próximo à costa gaúcha. A questão é decidir o que vamos fazer com essa riqueza. Boa parte do mundo enriqueceu com petróleo. Agora é a vez do Brasil.
O Estado teria direito a mais compensações econômicas a partir do leilão seguinte da ANP, estimado para 2022, quando cinco outros setores localizados diante do litoral gaúcho seriam oferecidos. Em 2017, outras áreas da Bacia de Pelotas chegaram a ser ofertadas em um leilão, mas não houve interessados em razão das dúvidas envolvendo o sucesso das explorações na região.
Relatórios alertam para risco ambiental e recomendam mais estudos
Embora o Rio Grande do Sul esteja excluído da lista de principais beneficiados em termos econômicos pelo eventual sucesso na exploração de petróleo ou gás da região a ser leiloada em outubro, está no perímetro sob algum risco de dano ambiental.
Relatórios prévios produzidos por órgãos do governo federal apontam perigos, falta de informações e solicitam estudos complementares que não foram feitos. Essas análises mais aprofundadas acabaram substituídas por uma manifestação conjunta das cúpulas dos ministérios do Meio Ambiente e de Minas e Energia que libera, via gabinete, fatias da Bacia de Pelotas para leilão.
O Ofício 70/2020 elaborado em janeiro de 2020 pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) sustenta que as áreas destinadas a leilão da Bacia de Pelotas abrigam até 64 espécies ameaçadas de extinção - 35% "criticamente em perigo".
Já a Informação Técnica nº 2 do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), de dezembro de 2019, cita que a bacia localizada entre o Uruguai e Santa Catarina "é marcada por uma alta complexidade oceanográfica, o que faz com que seja uma área essencial para reprodução e alimentação de diversas espécies", além de "corredor migratório e área de alimentação de tartarugas marinhas. Também se destaca pela presença de aves marinhas e de cetáceos como a toninha, espécie 'criticamente em perigo'".
O instituto aponta ainda que "não há processos de licenciamento ambiental de atividades de perfuração marítima nestes setores, aprofundando a ausência de informações ambientais da área, bem como restringindo o acesso a modelagens de dispersão de óleo que possibilite uma avaliação quanto a áreas potencialmente atingidas, tempos de toque (prazo para atingir a costa) e probabilidade".
Por isso, o Ibama sugeriu a exclusão de parte das áreas inicialmente previstas do leilão (o que foi atendido pela ANP), e recomendou, para as demais, "uma avaliação prévia estruturada de caráter estratégico, como a Avaliação Ambiental de Área Sedimentar (AAAS) para subsidiar a oferta de blocos na região". Essa AAAS não foi realizada. Em vez disso, com base na legislação atual, foi emitida a manifestação conjunta dos ministérios autorizando a continuidade do processo.
— O governo está buscando expandir a fronteira petrolífera, mas a Bacia de Pelotas é controversa porque abriga 64 espécies ameaçadas e não conta com avaliação ambiental prévia. É temerário. Por isso, pedimos a retirada das bacias de Pelotas e Potiguar (do leilão de outubro). Caso isso não ocorra, vamos entrar com ações judiciais — afirma a diretora da ONG ambientalista Instituto Arayara, Nicole Oliveira.
O professor do Departamento de Mineralogia e Petrologia da UFRGS Luiz Fernando de Ros não acredita em risco iminente à natureza:
— Há muita fiscalização ao longo de toda a costa brasileira. Em relação ao Rio Grande do Sul, creio que só haveria risco significativo se a exploração ocorresse mais próximo da costa (fica a cerca de 200 quilômetros).
O Ibama informou que não dispõe de relatórios consolidados sobre infrações ambientais envolvendo a extração de petróleo no mar brasileiro nos últimos anos. O sistema de pesquisa online do instituto aponta 180 ocorrências no oceano envolvendo diferentes produtos, com origem em plataformas marítimas e os mais diferentes níveis de gravidade desde janeiro de 2020.
Em 2019, conforme seu mais recente relatório ambiental, apenas a Petrobras registrou 17 vazamentos significativos (com volume equivalente a pelo menos um barril) envolvendo petróleo ou derivados, em um volume total de 415 metros cúbicos - o equivalente a 17% de uma piscina olímpica. Desse volume, 99,5% envolveu petróleo, e 98% ocorreu no mar. Na maior parte das vezes (62%), a razão do acidente foi falha em equipamentos.
O que diz o governo federal
Trechos da manifestação conjunta dos ministérios do Meio Ambiente e de Minas e Energia sobre a Bacia de Pelotas:
"De fato, um dos resultados da AAAS (Avaliação Ambiental de Área Sedimentar) é o fornecimento de recomendações para o processo de licenciamento ambiental. Contudo, a ausência da AAAS não compromete os aspectos de proteção ambiental e segurança operacional, já que há instrumentos que obrigam as empresas a implementar medidas de prevenção e de mitigação de impactos ambientais, associados a um robusto arcabouço regulatório de segurança das operações, fiscalizado regularmente pelos entes reguladores." (...)
"Os impactos advindos de um derramamento de óleo em áreas ambientalmente sensíveis serão as principais questões na fase exploratória para se avaliar a viabilidade ambiental. Assim, cenários com alta probabilidade de toque (chegada da poluição à costa) poderão implicar em negativa de licença. Os Planos de Emergência Individuais dos empreendimentos a serem licenciados devem contemplar análises de vulnerabilidade, com especial atenção às Unidades de Conservação e às espécies ameaçadas presentes na área. Poderão ser exigidos recursos adicionais aos recursos mínimos previstos (...)"
Como nasce um campo de petróleo
A licitação de blocos para exploração é apenas a primeira etapa até a efetiva produção de petróleo ou gás. Veja os principais passos:
- Aquisição de blocos exploratórios: a ANP define áreas com potencial para exploração e produção de petróleo, e que serão oferecidos às empresas por meio de licitações.
- Estudos da bacia: a empresa que adquiriu a concessão de um bloco analisa a bacia sedimentar onde ele está localizado para determinar o local com mais chance de ter petróleo ou gás. Para isso, usam informações como estrutura e composição das rochas, além da chamada análise sísmica, que traça o perfil geológico com uma espécie de sonar.
- Perfuração: etapa que demanda maior investimento, é feita por meio de uma sonda com broca na extremidade. Somente nessa etapa é possível garantir que há petróleo ou gás natural na área. A descoberta deve ser notificada à ANP em até 72 horas.
- Plano de avaliação: a empresa pode solicitar um prazo adicional para avaliar a nova jazida e julgar se a descoberta é viável ou não comercialmente.
- Avaliação da descoberta: análise técnica e econômica, com base em mais informações obtidas por meio de perfurações de poços ou recolhimento de amostras, para confirmar a viabilidade econômica. Então é feita uma "declaração de comercialidade" para dar início de fato à extração. Se isso não ocorrer, a área deve ser devolvida.
Fonte: Petrobras