Seja para ir de um lugar a outro ou para garantir o sustento da família, milhares de pessoas dependem, diariamente, da BR-116. São motoristas, comerciantes e moradores que veem a sua rotina subordinada a uma rodovia saturada e sem perspectiva de melhora em futuro breve. Somente no trecho sul, circulam, em média, 6,8 mil veículos a cada dia.
Entre Eldorado do Sul e Pelotas, o movimento, especialmente de caminhões, acentuou-se de tal forma que a conclusão da duplicação tornou-se uma demanda urgente entre os usuários.Porém, nem sequer existe previsão para a finalização da obra, iniciada em 2012. Sem o repasse de verba pelo governo federal, o empreendimento de infraestrutura está quase paralisado desde 2016. Tamanha morosidade frustra gente que precisa da estrada e também autoridades da região, que, há cerca de dois meses, deram início a um movimento pela liberação de recursos. Hoje, a obra que surgiu como um alento é vista com descrédito pela comunidade.
Em meio ao impasse sobre a sequência dos investimentos, Zero Hora conta a história de cinco pessoas que conhecem muito de perto a realidade da BR-116 e que torcem para que a duplicação mude as suas vidas. Para melhor.
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O frentista
Não existe alguém que trabalhe há mais tempo no Posto Coqueiro, em São Lourenço do Sul, do que Jorge Antônio Furtado. Com 57 anos, o frentista boa-praça soma mais de quatro décadas de serviço no tradicional paradouro da BR-116 – antiguidade suficiente para lhe conferir o título de decano entre os colegas.
O funcionário mais experiente é também o que diz melhor conhecer a via em frente ao posto. Isso porque, apesar da função, Jorge passa mais tempo socorrendo motoristas em apuros do que entre bombas de gasolina e diesel.
Com tantos anos de labuta, ganhou a confiança da clientela e se tornou referência no resgate de caminhões empenhados no trecho mais ao sul da BR-116.
De Guaíba a Pelotas, quando um veículo estraga, é bem provável que o seu celular chame em instantes, orgulha-se:
– Não deixo caminhoneiro na mão, seja a hora que for. Se alguém ficar na estrada, vou lá ajudar, seja freguês ou não. O pessoal já tem o meu telefone e me liga direto. É que, por aqui, todo mundo me conhece.
Neste período, entre ter a carteira assinada e atingir a fama na estrada, Jorge casou-se, ganhou três filhas de criação e uma de sangue, além de seis netos. Envelheceu assistindo à BR-116 parada no tempo diante de seus olhos.
Em 1974, quando começou a trabalhar de "faz-tudo" no posto por indicação de um tio, existiam somente três bombas de combustíveis no estabelecimento e o Fusca era considerado um carro moderno. Hoje, são 23 equipamentos instalados e a Volkswagen deixou de produzir o veículo há mais de 20 anos no país. Neste mesmo lapso, a estrutura da rodovia permaneceu idêntica.
– A estrada é a mesma, o que aumentou foi o movimento. Não tem nem comparação. Tem dias que não sei como suporta, está no limite – avalia Jorge.
A comerciante
O constante vaivém de veículos tornou a BR-116 vitrine para a agricultura familiar de Turuçu, município de 3,6 mil habitantes localizado entre São Lourenço do Sul e Pelotas. Consciente de que a vizinhança com a rodovia poderia render impulso financeiro, a capital nacional da pimenta instalou uma construção dedicada à especiaria bem na beira da estrada.
Inaugurada em 2005, a Casa da Pimenta, no km 482, é comandada desde 2013 pela agricultora Verônica Tuchtenhogen, 56 anos, presidente da Cooperativa das Atividades Agroindustriais e Artesanais da Agricultura Familiar de Turuçu (CooperTuruçu). Cabe a ela garantir que o empreendimento mantenha o sustento dos pequenos produtores da região. Por isso, quanto maior o movimento na via, melhor.
– É uma mina de ouro – garante Verônica, sem citar o faturamento, alegando questões de segurança.
A Casa da Pimenta nasceu de investimento do governo federal para o fomento da agricultura familiar. A primeira edificação era só uma estreita peça, mas duas reformas garantiram a ampliação.
– Primeiro, a ideia era que fizéssemos uma feira, mas, como já tínhamos as agroindústrias e a BR, achamos melhor vender os nossos industrializados. Geleias, cucas, produtos à base de pimenta. Tudo da colônia. Deu certo por causa do movimento. São produtos para turista, e, por isso, têm de estar na estrada – explica a agricultora.
Em frente à Casa da Pimenta, a obra da rodovia está quase pronta, mas ainda não se sabe como se dará o acesso dos motoristas ao pequeno comércio. Por isso, Verônica teme que o negócio seja comprometido.
– Coisa linda quando estiver pronto. Para quem viaja vai ser bom. Mas fico com preocupação e, às vezes, torço que nem saia. Queria que esse pedacinho ficasse todo em uma pista só – confessa, rindo.
O policial
Há 12 anos, Luís Otávio da Silva tem a BR-116 como escritório. Agente da Polícia Rodoviária Federal (PRF), o pelotense é um dos responsáveis pela fiscalização de 80 quilômetros da rodovia, entre São Lourenço do Sul e Pelotas.
A atividade consiste, basicamente, em monitorar o que se passa na estrada e prestar atendimento em eventuais ocorrências. O problema é que a saturação da BR-116 tem tornado a segunda tarefa bem mais frequente do que a primeira.
– Dois princípios do Código de Trânsito Brasileiro direcionam o trabalho: a segurança e a fluidez do trânsito. Todas as nossas atividades buscam satisfazer essas exigências, mas aqui é cada vez mais árduo. Notamos aumento significativo no número de veículos, enquanto a via não cresceu no mesmo ritmo. O que acontece? Mais congestionamento e perigo – explica.
Luís Otávio conta que, com frequência quase diária, tem de abandonar o planejamento de fiscalização montado para o turno para atender chamados. Normalmente, acidentes de trânsito que, na sua avaliação, poderiam ser evitados:
– O grande perigo em uma rodovia é o momento em que os veículos se cruzam, porque os acidentes normalmente acontecem em ultrapassagens. Na BR-116, hoje, temos essa condição adversa de a rodovia não comportar mais o seu fluxo.
Para o agente, a duplicação pouparia vidas e transtornos na estrada. O irônico é que, indiretamente, a corporação está interferindo na obra. O posto da PRF de Pelotas, no km 508, está instalado bem no meio das duas novas pistas no único trecho que já está liberado para o trânsito, o que força um desvio na rodovia. E a construção da nova sede, que depende da liberação de recursos pelo Dnit, ainda nem começou.
– É frustrante – resume o agente.
A moradora
No número 3.336 da BR-116, junto ao km 525, vive a doceira Nadia Regina Martins Alves, 57 anos. O endereço fala por si: a estrada, que à maioria serve só de passagem, para ela, faz as vezes de lar.
A casa onde mora com o marido e dois filhos fica na comunidade Lauro Ribeiro, conhecida como trevo da Vega – referência à antiga fábrica de compotas fechada na região. Sem nome, a ruela sem saída de chão batido leva o da BR.
Para Nadia, é como se o asfalto fizesse parte do seu quintal. Mas essa vizinhança cinzenta tem dias contados. A sua residência aparece na lista dos 53 endereços que terão de ser desocupados para o avanço das obras nas redondezas de Pelotas. Ainda não há previsão para que a mudança ocorra, mas se sabe que uma rua lateral a um viaduto novo passará por ali e que a família deve ser realocada.
Enquanto o futuro não chega, a construção também tem servido de local de trabalho. Na cozinha, Nadia passa ao menos oito horas preparando cerca de 500 pacotes de biscoitos caseiros que vende por semana, mesmo que o ambiente traga transtornos:
– Comecei a sentir tontura e mal-estar. Fui ao médico e disse que morava numa BR, onde tem muito barulho todo o dia. Aí ele já viu, né. Falou que era labirintite.
Além da vizinhança ruidosa, Nadia também se queixa da ausência de uma passarela para atravessar a via. Para levar a filha de 11 anos até o ônibus escolar, costuma levar 15 minutos para vencer as duas pistas com segurança, arriscando-se entre veículos. Diante das dificuldades, ao conversar sobre a imperativa mudança, Nadia revela sentimento contraditório.
– No começo foi bem difícil, mas hoje me sinto melhor aqui e não quero mais sair. É um lugar bom, bem tranquilo – diz, ao som de buzinas no quintal.
O caminhoneiro
Na tarde da última quarta-feira, o caminhão Mercedes-Benz de Lotávio Vale deixou o porto de Rio Grande carregado de borracha. Na manhã seguinte, bem cedo, depois de uma pausa na madrugada para o sono, o material era descarregado no pátio de uma empresa de logística em Novo Hamburgo, e o motorista retornaria para a Zona Sul.
Por esse trajeto, o caminhoneiro de 57 anos passa ao menos duas vezes por semana. Calcula que, somente de BR-116, percorra ao menos mil quilômetros entre idas e vindas a cada sete dias.
Autônomo, Lotávio está entre as centenas de profissionais responsáveis pelo transporte de importações e exportações que chegam e deixam o Estado por Rio Grande. Como a maioria deles, tornou-se assíduo na BR-116, principal ligação entre o porto e a Região Metropolitana.
Motorista experiente, sabe que as condições precárias da estrada representam prejuízo no seu bolso e no de colegas. A variação de velocidade consome mais diesel, e os buracos na pista comprometem a suspensão, explica:
– Quando o caminhão está carregado, fico feito bolinha de pingue-pongue aqui dentro.
De fato, do alto da cabine do veículo, a sensação de instabilidade é bem maior se comparada à da direção de um carro, porque o sacolejo produzido pelo asfalto irregular se faz mais intenso. Mas essa estatura também pode se tornar uma vantagem ao oferecer uma visão mais ampla da rodovia. Segundo Lotávio, não há buraco da BR-116 que não ele conheça.
Para evitar acidentes na estrada, que considera perigosa, o caminhoneiro leva consigo uma máxima repetida ao menos duas vezes durante uma hora de conversa com a reportagem:
– Se o motorista conversasse com as placas, não tinha acidentes.
E, ao ser forçado a diminuir a velocidade para 30 km/h em razão de uma fila de caminhões, emendou com outra citação, comum aos usuários da BR-116:
– Isso é um problema. Se fosse duplicada, o trânsito fluiria.