Aplicativo que reúna informações sobre abrigos no Rio Grande do Sul? Tem. Sobre locais para procurar cães e gatos perdidos durante a enchente? Tem também. E para anunciar que busca um parente que ainda não fez contato? Claro. Plataforma que conecte desabrigados a serviços de saúde? Com certeza. Funcionalidade para conseguir voluntários para ajudar na faxina pós-cheias ou no recolhimento do lixo acumulado com a água? Sim, para ambos.
Para cada demanda surgida como um turbilhão no Estado desde o início de maio, uma ou mais soluções tecnológicas foram criadas em seu socorro. Instituições de ensino, startups, poder público e sociedade civil se uniram nessa luta – plataformas como o Achados e Perdidos, o Pets RS, o SOS-RS, o AbrigosRS, o AjudaRS e o repositório de mapas Cheias no Rio Grande do Sul ganharam espaço ao sanar necessidades emergenciais surgidas no período.
O TecnoPUC, parque tecnológico da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), se tornou o epicentro do ecossistema de inovação mobilizado pelo enfrentamento dos efeitos da enchente. Se antes o espaço servia para o trabalho de empresas da área tecnológica, desde o início de maio passou a receber, também, dezenas de voluntários que se uniram para ajudar a viabilizar a complexa rede de atendimentos e logística necessários para suprir as necessidades básicas dos mais de 60 mil desabrigados existentes no RS.
O local tem acolhido ainda startups que funcionam no Instituto Caldeira, atingido pela inundação, profissionais de instituições como a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e a Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e autoridades do poder público, alguns desalojados e outros buscando uma comunicação mais próxima com as iniciativas surgidas neste momento.
A secretária estadual de Inovação, Ciência e Tecnologia, Simone Stülp, considera que a existência de um ecossistema de inovação fortalecido no RS, composto por poder público, empresas, academia e sociedade civil, permitiu uma resposta mais rápida para a situação de calamidade pública:
— Em um momento de dificuldade como este, esse ecossistema faz com que os líderes desse setor já se conheçam e estejam trabalhando de forma conjunta e colaborativa. Isso permite que os projetos sejam focados na atual problemática e sejam construídos e rodados de uma maneira facilitada. Se não tivéssemos os contatos uns dos outros, essa resposta, com certeza, demoraria mais para acontecer — avalia a secretária.
Bonanza após a tempestade
De diferentes soluções, surgiu o hub Bonanza, que faz a gestão das necessidades dos abrigos. O grupo desenvolveu metodologia própria e pretende levar sua experiência no enfrentamento aos efeitos das enchentes para outras situações semelhantes que acontecerem no Brasil.
Com início das atividades no dia 4 de maio – dois dias após o Guaíba ultrapassar sua cota de inundação, de 3m, e na data em que o nível superou os 5m –, o Bonanza, que pretende se formalizar como instituto ou organização não-governamental (ONG), conta com mais de 8 mil voluntários cadastrados, 241 “padrinhos” em abrigos, que comunicam à plataforma as demandas daquele local, 536 centros voluntários cadastrados, 30 cozinhas solidárias, 73 centros de coleta de doações e 129 abrigos para animais.
Na prática, o que o hub faz é mapear as demandas dos abrigos, sejam eles oficiais ou que funcionam como lares solidários, disponibilizar essa informação para os centros de triagem da Defesa Civil, prefeituras e organizações civis que estão recebendo e coordenando as doações e auxiliar na distribuição desses donativos. Para manter a lista de necessidades atualizada, os voluntários mantêm, em cada abrigo, a figura de “padrinhos” e “madrinhas” que frequentam esses locais e comunicam o que está faltando ali.
Os dados coletados são compartilhados, mediante assinatura de um termo de cooperação, e utilizados por diferentes plataformas, como o SOS-RS, o AbrigosRS e o AjudaRS, que trazem informações como as demandas urgentes de cada abrigo, se o lugar aceita animais e se tem vagas disponíveis. As aplicações são colaborativas e qualquer pessoa pode editar os dados.
O Bonanza se divide em times. Um deles é o de demandas: as necessidades dos abrigos são recebidas e a equipe procura entender a realidade daquele local – quantas pessoas estão ali, qual o perfil delas, quantos itens daquele pedido são suficientes. A partir daí, o time de logística entra em contato com os centros de distribuição, atrás dessas doações. Quando são encontradas, é feito um esforço de organização para a busca daqueles donativos.
— Quando a gente começou, trabalhávamos em uma mesa, tipo call center, ligando para os abrigos e pegando as demandas. Nossa operação se baseava em saber o que estava sobrando em um abrigo e conectar as sobras, para que todos os abrigos tivessem esse contato. Na segunda semana, identificamos que existia uma quebra de logística e que o centro de distribuição acabava concentrando essas doações, e elas acabavam paradas lá. Aí, começamos a conectar os abrigos com esses centros, para escoar as doações — descreve o voluntário Pedro Schanzer.
A questão é que as prefeituras tinham um registro oficial de abrigos, mas muitos deles eram informais e, por isso, as doações nem sempre iam para esses locais. A estimativa do hub é de que pelo menos 60% dos lugares de acolhimento não estejam cadastrados no poder público.
Outro esforço que o Bonanza faz é na gestão dos voluntários – se, em um primeiro momento, a maior demanda era por pessoas que apoiassem no funcionamento dos abrigos, em um segundo, a logística passou a ser também importante. Agora, uma nova fase começa: a de procura por ajuda na limpeza. Para isso, iniciativas como o Green Thinking, que trabalha com pautas de sustentabilidade e limpeza urbana, e a Hopeful, que desenvolve plataformas educacionais com produtos e serviços digitais e oferece assinaturas para indivíduos e instituições aprenderem o que fazer antes, durante e depois de desastres ambientais.
— A gente não quer ter o controle de tudo que está acontecendo: a gente quer poder auxiliar e integrar esses esforços. E eu acho que essa é uma mensagem que tem que chegar ao poder público, de que não adianta um dia o DMLU dizer “coloquem seus móveis para fora de casa” e, no outro dia, ter uma gigantesca enchente e esse lixo acabar entupindo o bueiro. Essa bandeira que levantamos é para que existam operações e dados públicos confiáveis, para que a população se sinta mais segura — resume Schanzer.
Mais para frente, um novo momento se avizinha, no qual o hub também pretende atuar: no apoio na reconstrução das moradias e da infraestrutura destruída pelas enchentes. Até lá, abrigos seguirão sendo necessários, assim como a unificação da comunicação entre eles.
— Optamos por ter uma postura de fornecedor e gestor de informações, então, claro, temos alguns pontos de contato com o poder público, mas não temos a pretensão de substituí-lo ou ser englobado por ele, porque sabemos o tamanho do problema que está acontecendo. Estamos apenas ajudando — adverte a voluntária Caroline Vanzellotti.
Mesmo fornecendo dados para outras iniciativas, o Bonanza trabalha no desenvolvimento de uma solução tecnológica própria, que permita maior confiabilidade das informações, que serão atualizadas por pessoas específicas. A ideia é que também seja possível criar sistemas de estoques dos abrigos e ranquear as demandas dos locais de acordo com o seu grau de prioridade, para que se entenda pelo que é mais importante, naquele momento, correr atrás.
Funcionando como hub, a ideia é que o Bonanza possua uma estrutura mínima tecnológica que se consiga “encaixar” em outros contextos de desastres ambientais, para além do registrado agora, no RS.
— A partir dessa estrutura, aquele conjunto de pessoas vai poder fazer suas escolhas. Por exemplo, qual será a minha ferramenta de gestão? Escolhem e encaixa. Qual a ferramenta de logística? Será tal, e encaixa. Vamos fazer todo um mapeamento para essas pessoas saberem em quais frentes se encaixam — explica o voluntário Olimar Teixeira Borges.
Uma parceria com a UFRGS também deve qualificar os instrumentos de geolocalização usados pelo grupo, utilizando, por exemplo, dados sobre riscos de inundações para a tomada de decisões sobre onde instalar abrigos.
Parceria com o poder público
Aline Santos Barbosa integra o hub como representante do Conselho Municipal dos Direitos do Povo Negro (CNegro) de Porto Alegre. Sua função é atuar junto às lideranças comunitárias.
— Não tem como fazer um movimento sem a sociedade e não tem como realizar coisas boas e democráticas sem o governo. Por isso, precisamos fazer essa comunicação. Vim para cá porque aqui era o espaço em que as pessoas estavam sendo atendidas. A partir disso, posso somar, tentando atender a comunidade negra — ressalta Aline.
Aline destaca o mapeamento feito pelo Núcleo Porto Alegre do Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia Observatório das Metrópoles, no qual o pesquisador André Augustin identificou que as áreas mais pobres e com concentração expressiva da população negra foram mais afetadas pela enchente. Por isso, o enfrentamento aos efeitos da cheia precisa envolver a escuta dos desabrigados, que deve levar em conta recortes sociais e raciais. Para a head de lideranças comunitárias, a unificação de dados e a gestão logística pensada nessa proposta do grupo garante uma melhor compreensão do cenário e prevenção de momentos de crise.
Mesmo com a ideia de criar um formato jurídico que lhes permita levar a metodologia elaborada para outras situações de desastres naturais que ocorrerem em todo o Brasil, os voluntários torcem para que entes do poder público utilizem os dados e as ideias coletadas para criar ferramentas ainda melhores e mais robustas, que auxiliem mais pessoas.
— Talvez a nossa maior contribuição seja que quando, e a gente sabe que não é mais um “se”, mas “quando” acontecer de novo, que as pessoas não partam do zero como a gente partiu — comenta o voluntário Matheus do Carmo, que participou de um projeto semelhante em setembro, de mapeamento dos abrigos e doações no Vale do Taquari, e levou a sua experiência para o Bonanza.
O desafio, hoje, é evitar que o número de voluntários caia, o que inviabilizaria a manutenção do atendimento realizado hoje. Entre os esforços para evitar essa debandada, está uma parceria com uma empresa que organizará as pessoas que se voluntariaram a partir de suas habilidades, a fim de entender em qual setor cada uma pode ser mais bem aproveitada. Uma parceria com a Cruz Vermelha também prevê o treinamento dos voluntários para situações de desastres e a entrega de uma certificação dessa formação.
Mas, se o hub se preocupa em manter voluntários, também alerta para a importância de o poder público se preparar para que situações como essa não voltem a ser tão calamitosas.
— Se acontecer de novo, as pessoas mais à margem da sociedade não podem ser afetadas novamente. A gente não pode pensar em criar abrigos emergenciais de novo. A gente não pode ter 1,5 mil pessoas por dia procurando abrigo em Porto Alegre. A gente não pode ter disputa entre prefeituras, pensando em como mandar de volta aqueles abrigados — descreve do Carmo.
Para além de voluntariar, Sthefany Barbosa tem usado a estrutura de sua empresa, a Able, para contribuir com o enfrentamento à situação de calamidade pública. Com 50 funcionários que atuam no atendimento de clientes de empresas que estão com operações paradas, a Able passou a operar auxiliando na gestão dos abrigos. A profissional defende que outros empresários também avaliem de que forma suas companhias podem contribuir com a reconstrução do Estado, o que pode ampliar o resultado que teria a ação de uma só pessoa.
Cadastro de soluções inovadoras
Para auxiliar na organização dessas ofertas em um só lugar, o hub GovTech LAB reuniu mais de 200 propostas de startups que podem ser usadas no enfrentamento aos efeitos das enchentes no RS. Nesses casos, muitas das iniciativas já existiam antes da tragédia ambiental, mas foram identificadas como possibilidades de sanar alguma demanda. Uma lista com as soluções é disponibilizada para que entes públicos as analisem e possam fazer parcerias.
As ideias vão desde tecnologias de impacto para atender populações vulneráveis até o monitoramento da qualidade da água por inteligência artificiando, passando por quiosques de lavanderias compartilhadas e redução e gestão de desastres. As ferramentas podem ser usadas para melhorar a eficiência de serviços públicos e embasar políticas governamentais.
O GovTech LAB atua em três frentes: a realização de um evento, que ocorreria em junho e foi transferido para a semana que vem; um programa de inovação focado em políticas públicas, focado na atualização de gestores e servidores para o uso de novas tecnologias; e o trabalho junto a startups, na busca por resolver desafios públicos.
— Nós chamamos de GovTech, mas, na verdade, são startups das áreas de educação, sustentabilidade, agronegócio, que têm uma ferramenta ou serviço tecnológico que eles entendem que podem melhorar um serviço público lá na ponta, melhorar uma condição de infraestrutura, enfim, tudo o que hoje demanda soluções imediatas — resume Téo Foresti Girardi, fundadora e CEO da iniciativa.
As inscrições no catálogo são gratuitas e, neste momento, a maioria dos serviços é oferecida voluntariamente pelas startups que já se cadastraram, mas, dependendo do caso, poderá ser necessário fazer contratações por meio da nova lei de compras públicas. Com a nova legislação do setor, a expectativa é de que a contratação pelo poder público seja agilizada, e o GovTech LAB pretende ser um facilitado nessa conexão.
A iniciativa acontece em parceria com a Secretaria Estadual de Inovação, Ciência e Tecnologia (Sict), com a qual o GovTech LAB compartilhou a sua lista de soluções cadastradas. Depois do cadastro, é feita uma análise do nível de maturidade daquela solução tecnológica.
Entre as soluções cadastradas, está a ePro Health, uma startup que oferece atendimento em telessaúde. Ciada pela VisionnIT, de Passo Fundo, a plataforma conta com 600 profissionais da área da saúde cadastrados, e disponibiliza em torno de 9 mil horários de atendimento diários. Para as vítimas das enchentes, a startup está oferecendo seu serviço gratuitamente.
Outra iniciativa listada pelo GovTech LAB foi a plataforma digital “Impactos das cheias de maio de 2024 em Porto Alegre”. Desenvolvido pela empresa porto-alegrense Codex, o recurso possui três aplicações: dispõe de um painel informativo com dados de edificações, população, bairros, empresas, vias e serviços mais afetados, apresenta uma simulação em 3D para visualizar o alcance da inundação na Capital e exibe “antes e depois” de regiões da cidade, a partir de imagens de satélite.
Para além de empreendimentos gaúchos, uma startup carioca também tem feito tratativas com municípios do RS para facilitar a gestão pública para a proteção das mulheres nas cidades: a Direito Ágil, que desenvolveu o aplicativo ElaProtegida, que gera denúncias de violência doméstica e extrafamiliar por vítimas ou testemunhas, além de permitir o cálculo de risco de vida, a fim de definir uma priorização de atendimentos. O objetivo é agilizar o atendimento a ocorrências desse tipo em cidades gaúchas afetadas pelas enchentes.
Para além do atendimento emergencial, Téo relata que há empresas como a Augen, startup de Santa Maria, que propõem soluções de análise e gestão digital da água e do saneamento, o que poderá auxiliar o poder público a reconstruir esses sistemas.
— O Rio Grande do Sul tem um ecossistema de inovação extraordinário, um dos melhores do país, e acho que é um momento de olhar para isso também: quando chegarmos na etapa da reconstrução, poderemos servir como um modelo de gestão pública eficiente, mais conectada, mais transparente e mais próxima do cidadão — sinaliza a CEO.