Com uma grande fatia do território do Rio Grande do Sul submersa pela enchente, emergiu no noticiário um grupo de especialistas explicando à população gaúcha por que a água invadia casas, derrubava estruturas e solapava cidades. Boa parte desses cientistas está vinculada ao Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH), órgão de excelência da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) no estudo do comportamento de águas urbanas e bacias hidrográficas.
Fundado em 1953, o IPH é referência em toda a América Latina na área de recursos hídricos, mas tem atuação praticamente restrita aos ambientes acadêmico e técnico. Agora, não só ajuda a entender as causas e consequências do desastre climático, mas também serve de farol para orientar os moradores de bairros alagados ou à mercê de inundação que ficam desorientados diante da frequente ausência de esclarecimentos das autoridades.
As projeções diárias antecipando eventuais recuos e avanços do Guaíba, por exemplo, viralizaram nas redes sociais. O número de seguidores mais que decuplicou, saltando de mil para 11,9 mil somente no Instagram, com aumento de 1.700% nas visualizações dos conteúdos públicos e de 2.400% nas interações.
— Sempre fomos muito demandados, sobretudo por prefeituras e órgãos públicos, mas o grande público não vê. Isso começou a mudar depois da enchente de setembro, quando teve grande destaque uma nota técnica que fizemos com sugestão de ações de curto, médio e longo prazo. Agora, a visibilidade aumentou com as projeções diárias do Guaíba — comenta o diretor do IPH, Joel Goldenfum.
Aos 63 anos de idade e com 35 de UFRGS, Goldenfum é engenheiro civil com doutorado em Hidrologia. Ano passado, recebeu do reitor Carlos André Bulhões convite para reestruturar o Centro de Estudos e Pesquisas de Desastres da universidade. Numa armadilha do destino, foi nomeado numa sexta-feira 13.
Desde então, Goldenfum tem conjugado esforços nas duas frentes, buscando entender os fenômenos que colapsam o Estado. Na crise atual, a rotina começa por volta das 6h e se estende até as 23h.
Criado para atender as necessidades da então Secretaria Estadual de Obras Públicas, sobretudo no ensaio de grandes empreendimentos em maquetes, o IPH ocupa nove prédios espalhados por 17 hectares do campus do Vale. Nos anos iniciais, professores de Estados Unidos, França, Portugal e Reino Unido formaram as primeiras turmas.
Hoje (com 37 integrantes), o corpo docente ministra aulas em 12 cursos, além das faculdades específicas do instituto, Engenharia Ambiental e Engenharia Hídrica. A cada semestre, são 2 mil novas matrículas e a pós-graduação, pioneira na América Latina, tem mestrado e doutorado com nota seis (numa escala que vai até sete) no Ministério da Educação.
— Temos professores e alunos de tudo que tem a ver com água, como geologia, arquitetura, agronomia. Além da atuação acadêmica, prestamos serviços para grandes empresas, como Itaipu e Petrobras, e capitais, como Porto Alegre e Curitiba, onde ajudamos na concepção do plano diretor de drenagem — exemplifica o diretor.
Ações multidisciplinares e sistemáticas
Na enchente atual, a ação é multidisciplinar. Há equipes coletando amostras das regiões alagadas para detectar compostos orgânicos e patogênicos, mapeando áreas inundadas, verificando o sistema de proteção e de bombeamento da água represada, entre outras atividades. Segundo o diretor do IPH, Joel Goldenfum, desde o início o instituto percebeu que estava diante de um evento histórico. A partir daí, o monitoramento de todos os rios que desaguam no Guaíba passou a ser sistemático.
— A gente viu que tinha algo diferente. Podia ser parecido com a enchente de 1941, podia superar, e depois poderia passar dos seis metros (de nível do Guaíba). Ficamos fazendo projeções a partir do comportamento do rio das Antas, do Taquari, Jacuí, Sinos, Caí, de todos, porque cada um tem suas características, O Antas tem muito declive, o Taquari extravasa e o Jacuí tem várzea que espalha no tempo o volume de água. Se não fosse a várzea, a inundação chegaria a sete metros em Porto Alegre — afirma Goldenfum.
O IPH alerta para a necessidade de medidas estruturais de controle desde 2014. O principal, sustenta o pesquisador, é a adoção de mecanismos mais eficientes de monitoramento e alerta, além de treinamento da população para a percepção de riscos.
A gente viu que tinha algo diferente. (...) Ficamos fazendo projeções a partir do comportamento do rio das Antas, do Taquari, Jacuí, Sinos, Caí, de todos, porque cada um tem suas características. Se não fosse a várzea (no rio Jacuí), a inundação chegaria a sete metros em Porto Alegre.
JOEL GOLDENFUM
Diretor do IPH da UFRGS
A partir de 1899, quando a primeira régua foi instalada no Cais Mauá, a água só havia passado pelo píer em quatro ocasiões: 1928, 1936, 1941 e 1967. Nos últimos oito meses, essa barreira foi ultrapassada três vezes — setembro e novembro do ano passado, além de agora —, sendo que essas três marcas estão entre as quatro maiores da história, acompanhadas da de 1941.
— Todos os modelos apontam para aumento da frequência e da intensidade de eventos extremos. Vamos ter mais secas e mais enchentes, cada vez piores. A gente chama de desastre natural, mas não é natural. É antrópico. E é mais barato e eficiente disciplinar a ocupação de zonas urbanas e rurais do que construir medidas de proteção. Se tivéssemos erguido diques no Jacuí, a água teria passado por cima — aponta Goldenfum.
Egresso do IPH, o reitor da UFRGS salienta a sapiência gerada no instituto e diz que a instituição está aberta para compartilhar toda experiência acumulada em sete décadas de estudos hídricos. Carlos André Bulhões manifesta especial contrariedade com a contratação de consultorias externas diante da familiaridade da universidade com a realidade estadual.
— Uma organização local tem a vantagem de conhecer o ambiente, entender a cidade e a vida das pessoas. Até porque, seja quem for, virá bater nas portas da UFRGS e do IPH atrás de solução, pois somos o fiel depositário da história, do conhecimento e dos dados — afirma Bulhões.