Estudante do Ensino Médio numa escola pública e morador da Cohab C, em Gravataí, Jeser Mross Becker, aos 16 anos, desejava ir além da praia de Tramandaí, no Litoral Norte, até então o lugar mais distante que já havia visitado. Era 2005, e o adolescente que jamais tivera contato com a área tecnológica na instituição estadual onde estudava, queria transformar um sonho em realidade: criar o próprio robô para participar da principal competição mundial de robótica entre estudantes do Ensino Médio: a First Robotics Competition, nos Estados Unidos.
A ideia veio depois de ele participar da primeira edição da Globaltech - Feira de Ciência, Tecnologia e Inovação, em Porto Alegre, onde mergulhou em palestras e competições de robôs. Na época, recorda que ainda não havia projetos ligados à tecnologia em escolas públicas. Ao propor para o irmão, Asaph Becker, e colegas de aula o interesse em formar uma equipe, o obstinado Jeser escreveu aos organizadores do evento, misturando inglês e português, e enviou um e-mail no qual solicitava ajuda para começar um time. A mensagem chegou a uma equipe norte-americana, que enviou um DVD com as instruções solicitadas pelo gaúcho.
Sentados num banco da escola, Jeser e os amigos chegaram a cogitar desistir da ideia por considerarem impossível obter o valor a tempo de se inscreverem para a competição. O grupo, então, calculou que precisaria de R$ 50 mil para criar o robô e pagar as despesas da viagem.
— Era como ganhar na loteria. Porém, pensamos que toda pessoa precisava tentar pelo menos uma vez na vida. Se não conseguíssemos, entenderíamos que não era para ser. Se conseguíssemos, sabíamos que mudaríamos as nossas vidas. Éramos bem visionários —comenta, orgulhoso, Jeser, hoje com 34 anos.
Com a meta de obter ajuda financeira, o jovem e os colegas da equipe Heitortec - em homenagem à escola onde estudavam, a Heitor Villa-Lobos - passaram a percorrer a cidade de bicicleta, batendo nas portas das empresas da cidade. Porém, em todas acabavam sempre parados pelos seguranças.
Na escola, pediram ajuda à direção para obterem um espaço onde pudessem construir um robô. Um banheiro desativado, com menos de 10 metros quadrados, foi a área liberada aos estudantes. Com formação técnica em mecânica, Jeser seria o responsável por ensinar aos colegas a serventia de cada peça retirada de sucatas desmontadas.
— Reunimos os professores na sala de vídeo e dissemos que eles estavam ali para serem testemunhas do que faríamos. Estávamos desesperados porque era o final do Ensino Médio, sabíamos que não conseguiríamos chegar à faculdade e precisávamos de algo para nos dar motivação. Seria naquele momento ou nunca. Alguns deles choraram com pena da gente, temendo que quebrássemos a nossa cara. Até hoje, sou amigo de todos eles — comenta Jeser.
Investimento de R$ 10 para o primeiro robô
Como precisavam chamar a atenção do empresariado e da mídia, ele e os amigos investiram R$ 10 na compra de canos de PVC que, junto com peças de um antigo videocassete, um suporte de papel higiênico e folhas de radiografia, acabaram se tornando o Propi #001, o primeiro robô da equipe, que mexia os braços e as sobrancelhas. Um controle de videogame foi usado para mover Propi #001 e o visor do videocassete marcava há quanto tempo ele estava ligado.
Mas ainda era preciso mostrar a criação ao mundo. E isso só foi possível depois de enviarem mais de 500 e-mails para profissionais da imprensa e também diretores e presidentes da maior parte das empresas existentes no Rio Grande do Sul. E foi um destes emails que levou a HeitorTec a uma emissora de tevê e às páginas de Zero Hora, em novembro daquele ano. Faltava menos de um mês para eles conseguirem o dinheiro necessário para a viagem. As reportagens, de alguma forma, mobilizaram o empresariado local, que abraçou a ideia dos meninos da Cohab C. Quando restavam dois dias para o prazo final da inscrição, que custava US$ 6 mil, os adolescentes receberam a ligação do presidente de uma metalúrgica, que confirmou ter recebido o e-mail e estava decidido a pagar o valor necessário. O restante do valor foi pago pela montadora GM, de Gravataí.
Diariamente, caminhávamos 20 quilômetros entre ida e volta, e íamos passando nas ferragens pedindo parafusos e brocas para construir o robô. Levamos seis semanas para montá-lo e enviá-lo para os Estados Unidos."
JESER MROSS BECKER
Fundador da HeitorTec
— Quando chegou o nosso kit, nós não tínhamos um espaço para construir o robô. A prefeitura ofereceu um prédio em construção no Parque dos Anjos, que ficava a cerca de 10 quilômetros das nossas casas. Diariamente, caminhávamos 20 quilômetros entre ida e volta, e íamos passando nas ferragens pedindo parafusos e brocas para construir o robô. Levamos seis semanas para montá-lo e enviá-lo para os Estados Unidos — conta Jeser.
Para fazer os vistos norte-americanos, os estudantes foram a São Paulo (a solicitação em POA só foi disponibilizada a partir de 2017), mas precisaram dormir no aeroporto porque não tinham dinheiro para o hotel. Um norte-americano que fazia parte de uma igreja de Gravataí se voluntariou para ser o tradutor durante a viagem e ainda conseguiu o transporte e a estadia da equipe numa igreja em Nova York.
Os primeiros resultados
E o resultado de toda esta primeira parte da história? Em março de 2006, a Heitortec se tornou a maior atração por ser a primeira equipe da América Latina a representar uma escola pública em uma competição internacional de robótica. Como se não bastasse este feito, Jeser e os quatro amigos ainda conquistaram o terceiro lugar na regional de Nova York da First Robotics Competition. O time competiu com 33 equipes de escolas de Ensino Médio dos Estados Unidos e do Canadá e foi aplaudido de pé pelos outros competidores.
— Voltamos com uma carga muito grande de experiência. Conseguimos mais patrocínios. E acabamos nos tornando um dos projetos mais influentes. Escrevi um projeto de pesquisa de como implantar robótica em escolas públicas a custo reduzido. Fui a Brasília apresentá-lo e passei a ser convidado para palestrar em encontros de educação. Toda a equipe conseguiu chegar à universidade, com bolsa de estudos — comemora Jeser, que hoje é engenheiro mecânico e empresário.
Três anos depois, em 2009, quando havia 25 equipes no país, ocorreu a primeira competição no Brasil e o time de Jeser estava presente. Porém, a crise econômica de 2008 nos Estados Unidos, o aumento crescente do valor do dólar no Brasil e a reducação de patrocinadores levaram à redução drástica do número de competidores na FIRST, restando apenas cinco equipes no Brasil - três delas no Rio Grande do Sul e outras duas em São Paulo - até 2019.
Com mais conhecimento, aos 20 anos, Jeser foi convidado pelo Ministério da Educação para escrever a parte técnica do Marco da Educação de Robótica, que implementou a robótica em escolas brasileiras. No mesmo período, porém, ele foi vítima de dois furtos. O primeiro em São Paulo, quando levaram tudo que havia no seu carro. Depois, em Gravataí - desta vez, foram todos os equipamentos da equipe. Jeser, então, pediu ao principal patrocinador da equipe, a GM, um novo espaço para treinamento do grupo.
Naquele período, já casado com Daiane Cristina Rodrigues, uma jovem que ele conheceu em São Paulo, em 2006, na primeira competição que disputou, Jeser percorria o mundo convidado por empresas e escolas para implantar a robótica. Desta forma, conheceu a África do Sul, a China, a Índia, a Austrália e o Qatar. Foi a partir de uma bolsa de estudos, que Jeser e a esposa decidiram se transferir para a Austrália em 2014. De lá, continuariam apoiando a equipe de Gravataí.
— Minha base é na Austrália, mas eu viajo o mundo inteiro todos os anos por conta da robótica. Já conheço mais de cem países. Acabei criando uma equipe em 2014 que se tornou a melhor da Ásia/Pacífico. Meu irmão (Asaph Becker), que também era da primeira equipe da HeitorTec, veio morar na Austrália e hoje tem a segunda melhor equipe da região. Em Las Vegas, tem uma ótima equipe (de robótica) que é de um dos mentores da nossa primeira equipe — conta Jeser.
O presente do grupo de estudantes
Hoje, a antiga HeitorTec se chama FRC 1772 - The Brazilian Trail Blazers, é colecionadora de medalhas e troféus conquistados nas competições disputadas em diferentes países, tem entre seus integrantes estudantes de escolas públicas e bolsistas integrais de escolas privadas e reúne jovens de Gravataí, Cachoeirinha, Glorinha e até de Porto Alegre. Anualmente, para integrar a equipe, os interessados passam por uma seleção. Uma vez por semana, eles se reúnem numa área destinada à equipe dentro da GM, uma das principais patrocinadoras do time, para treinarem desde como se comunicar em público até a criação e montagem dos robôs.
Jeser, a distância e atuando como empresário na Austrália e no Brasil, ainda é um dos mentores da FRC 1772 e o maior exemplo entre os atuais integrantes. Neste ano, por exemplo, ele acompanhou a equipe numa competição na Turquia. Mesmo distante, permanece no grupo. Nas fotos, o pessoal costuma usar uma imagem de Jeser em tamanho real para estar no meio da turma.
— Todos que saem do time, voltam para ajudar. Eu mesmo ainda cuido da equipe (de Gravataí) e fecho os contratos. Só que agora o projeto tem um ciclo de três anos para os coordenadores. Depois, eles acabam indo morar em outros países onde a robótica tem maior apoio financeiro. Esta equipe de Gravataí tem muita influência no mundo, e no Brasil não sabem porque vários projetos no mundo contam conosco — conta Jeser.
Aliás, muitos dos ex-integrantes da equipe trabalham em áreas da informática e na coordenação de times de robótica na Índia, na China, nos Estados Unidos e na Austrália. Jeser e a esposa, por exemplo, estão contratados por um projeto para implantar a robótica numa comunidade aborígene no interior da Austrália. A ação fará parte de um documentário.
— A minha vida agora está baseada em implementar a robótica em países como o Brasil. Neste ano, só passei sete dias em casa desde janeiro. O restante foi viajando pelo mundo contratado para implementar a robótica. Na Índia, acabamos de inaugurar um laboratório de robótica para 2 mil crianças de todas as faixas econômicas de Mumbai, em parceria com a Amazon. Inauguramos também um laboratório na Austrália, que é o melhor do país com tudo o que há de mais avançado em tecnologia — revela.
Segundo Jeser, no mundo desenvolvido, como ele identifica, por exemplo, a Austrália, as disputas de robótica têm importância semelhante a uma competição de Fórmula-1.
— O investimento anual de uma equipe na Austrália é milionário. A robótica virou um dos grandes esportes da educação em muitos países. No Brasil, os patrocínios são poucos. Então, é possível entender a real realidade da diferença da valorização da educação no Brasil com relação a outros países e de como a criatividade do brasileiro é superior. E isso é uma skill (habilidade) muito valorizada fora do país — relata.
O mais impressionante é eu chegar numa escola na China e eles conhecerem a equipe, e na Cohab C, em Gravataí, nem lembrarem mais dela. É triste o Brasil gerar estes profissionais e não conseguir mantê-los no país."
JESER MROSS BECKER
Fundador da HeitorTec
Além dos trabalhos espalhados em todo o mundo, Jeser mantém a equipe de Gravataí, e junto com o irmão, Asaph, faz mentoria a uma em Florianópolis e outras duas no Paraná. Para manter a Trail Blazers com patrocinadores, Jeser precisou fundar uma Organização Não Governamental (ONG) sem fins lucrativos, na qual é voluntário.
— Na época que iniciamos na robótica, fomos os desbravadores. Hoje, muitas escolas têm robótica no Brasil, mas ainda falta apoio. A verdade é que se você for à China, à Índia, ao Qatar, à Austrália, à África do Sul, ao Canadá e aos Estados Unidos e perguntar pela Trail Blazers na área de educação, eles vão saber que se trata da equipe de Gravataí, do Rio Grande do Sul, do Brasil. O mais impressionante é eu chegar numa escola na China e eles conhecerem a equipe, e na Cohab C, em Gravataí, nem lembrarem mais dela. É triste o Brasil gerar estes profissionais e não conseguir mantê-los no país. Gostaria que o Brasil permitisse que a gente conseguisse desenvolver, de verdade, a robótica no país. Hoje, quem desenvolve acaba fazendo como fizemos, na batalha e "forçando a barra" para ficar no Brasil — finaliza Jeser.