Abrangente área de estudos, que abarca desde tarefas simples do dia a dia até o desenvolvimento de complexos robôs, a inteligência artificial (IA) tem ganhado força na Universidade Federal de Pelotas (UFPel) nos últimos anos. Desde 2019, professores e alunos atuam em uma verdadeira central de inovação, onde o uso da IA auxilia em soluções para problemas de forma mais ágil e com menos chance de erros.
Com financiamento misto — parte da UFPel e parte das instituições e empresas parceiras —, o Hub de Inovação em Inteligência Artificial (H2IA) é fruto de reflexões entre a Secretaria Estadual de Inovação, Ciência e Tecnologia (SICT) e a universidade sobre como ampliar esse segmento no Estado. A proposta, de acordo com pró-reitor de Planejamento e Desenvolvimento da UFPel, Paulo Roberto Ferreira Junior, é que o hub sirva para apoiar o desenvolvimento regional na inteligência artificial, permitindo que empresas locais também usem a tecnologia e, com isso, desenvolvam produtos e processos mais inovadores e competitivos. Já há casos, por exemplo, de emprego do recurso em atividades que têm eficácia ampliada em comparação à ação humana, como a análise de qualidade para precificação de grãos (leia mais abaixo).
Os dois principais desafios do setor são desenvolver maturidade sobre o tema em empresas e sociedade e formar mão de obra qualificada, explica o coordenador do hub, Ricardo Matsumura Araujo:
— Temos baixa maturidade e uma mão de obra extremamente escassa, a ponto de as poucas empresas que usam IA terem dificuldade de encontrar pessoal. Criamos o projeto para suprir parte dessas faltas que vínhamos observando, principalmente na região Sul.
Ferreira Junior integra o hub desde a sua criação. No entendimento do pró-reitor, o H2IA traz a inteligência artificial para o centro da universidade e permite que pessoas de todos os programas de pós-graduação tenham acesso a esse conhecimento.
Aulas sobre inteligência artificial já foram oferecidas por meio de uma disciplina transversal aberta para todos os cursos de pós-graduação, ministrada por Matsumura.
— É muito importante que a IA permeie outras áreas, porque os grandes avanços que percebemos na pesquisa e no desenvolvimento tecnológico estão na fronteira dos conhecimentos. Quando a inteligência artificial é aplicada à epidemiologia, por exemplo, ambas as áreas têm ganhos, mas principalmente a epidemiologia — exemplifica Ferreira.
O grupo é composto por oito professores, 12 estudantes de graduação e seis de pós-graduação. Ainda que vinculado à UFPel, o hub também envolve pessoas da Universidade Federal do Rio Grande (Furg) e do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-grandense (IFSul).
Por enquanto, o H2IA ainda não tem sede própria – a expectativa é de que três contêineres já existentes no campus Anglo, da universidade, tenham sua reforma e equipagem concluídas até o final do ano. Durante visita da reportagem de GZH a Pelotas, parte dos integrantes do hub, que tem atuado de forma remota, via pela primeira vez o futuro espaço que o grupo ocupará. É o caso de Jean Reinhold, 20 anos, aluno de Engenharia da Computação da UFPel.
— Eu descobri a inteligência artificial no fim do curso de Eletrônica, no IFSul, e me apaixonei. A área ainda é pouco estudada, mas tem muitas possibilidades de atuação. Qualquer atividade do dia a dia que tu penses pode ser alterada com a IA, de sistemas de segurança até melhores negócios para quitação de dívidas ou para produção de alimentos — cita o estudante, que tem visto o hub como uma oportunidade de ter uma experiência mais aproximada do mercado e ajudar em demandas reais das empresas.
A ideia do H2IA é desenvolver ações em quatro eixos principais: pesquisa e desenvolvimento, inovação, capacitação e divulgação. Por enquanto, no entanto, o hub tem focado principalmente na capacitação de alunos – que deve ser ampliada para o público geral no futuro – e na consultoria para empresas.
Parceria com empresas
Hoje, são parceiras e financiadoras do grupo as companhias Garten, Excelerate, FlagCX e QueroQuitar. A atuação em empresas vai desde palestras até consultorias especializadas, com lotação de equipe focada no desenvolvimento de soluções para suas demandas.
Especializada em automação agroindustrial, a Garten foi a primeira empresa a formalizar parceria com o hub. O diretor da companhia, Julio Baumgarten, adotou softwares com inteligência artificial em 2018 e, hoje, conta com uma equipe focada exclusivamente nessa área. Os programas permitem, por exemplo, o autoajuste da temperatura de um ambiente, com base em uma série de fatores previamente definidos no software, a fim de conservar melhor um produto.
Outro exemplo é um equipamento, desenvolvido durante um ano e meio pela empresa, que faz uma análise automática da qualidade do feijão, a fim de definir quanto ele vale. O grão possui em torno de 60 tipos de defeitos que, normalmente, são avaliados por uma pessoa. Para evitar o longo tempo despendido nessa análise e a subjetividade existente quando a observação é feita por um ser humano, a Garten desenvolveu um aparelho que fotografa os feijões e realiza a classificação automaticamente.
— A eficácia do nosso equipamento está em 95%, quando a do ser humano é de, em média, 70% — explica Baumgarten.
A parceria com o H2IA visou uma ampliação do conhecimento sobre inteligência artificial, tanto para desenvolver mão de obra especializada como criar os próprios programas.
— O profissional de inteligência artificial é um profissional que não está disponível no mercado. Então, estamos desenvolvendo essas pessoas. Contratamos alunos, trazemos eles para a empresa e começamos a treiná-los do zero — relata Baumgarten, que já tem 10 pessoas trabalhando só com IA.
Para o diretor da empresa, a tendência é que todos os equipamentos tenham algum grau de inteligência artificial, no futuro, que facilite a interação. A Garten tem investido nisso e desenvolvido dentro da própria companhia tecnologias nesse sentido, a fim de não precisar terceirizar atividades e tornar-se competitiva com relação a empresas chinesas.
Mas não são só empresas grandes que têm a ganhar com a inteligência artificial. Outro exemplo trazido por pelo coordenador do hub é o uso de programas com IA para controlar o estoque de uma loja ou restaurante. Se o estabelecimento tiver pouco estoque, terá demanda, mas não terá produto a oferecer. Por outro lado, se tiver muito estoque, gastará mais do que precisaria com armazenamento e correrá o risco do desperdício.
— Normalmente, o próprio dono faz de cabeça o cálculo do estoque, mas a IA faz isso automaticamente, com base em como foi o teu estoque nos últimos 24 meses, por exemplo. A inteligência artificial se sai muito bem em tarefas de predição, especialmente quando a empresa já está armazenando dados que nutram o software desde antes da sua implementação — observa o professor da UFPel.
Ética e inteligência artificial
Segundo Matsumura, é fundamental aumentar a maturidade da sociedade como um todo em seu conhecimento sobre inteligência artificial, pois ela passará a afetar muitas políticas públicas, desde hospitais que usarão a IA para definir quem irá para a unidade de tratamento intensivo (UTI) e quem não irá, até algoritmos de reconhecimento facial em câmeras de vigilância municipais:
— Precisamos discutir como implementar a inteligência artificial de forma ética. Hoje, o cidadão comum não tem ideia de que isso existe e nem quais seus malefícios e benefícios — analisa.
Gerente de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação de Pesquisa e Pós-Graduação da Unisinos, Silvio Bitencourt afirma que o uso da IA no Brasil precisa preservar dados sensíveis dos indivíduos e que a construção desses algoritmos deve ser feita de forma a não reproduzir preconceitos e pontos de vista de seu próprio criador.
— É necessário que a preocupação com os direitos humanos, por exemplo, seja um elemento fundamental na elaboração de qualquer programa. Há muitos riscos e questões a serem superadas, para não contaminarmos os programas com preconceitos e visões parciais que tolham direitos ou privilegiem alguns grupos — avalia Bitencourt, que considera que a formação dos profissionais que lidarão com inteligência artificial precisa envolver não apenas habilidades tecnológicas, mas também humanas e sociais.
Apesar de haver riscos, o docente ressalta que é preciso desmistificar a visão que ainda existe sobre inteligência artificial, de que ela representaria alguma ameaça à humanidade. Bitencourt reforça que o mundo atravessa um momento de transformação digital acelerado pela pandemia, que envolve não só tecnologias de informação e comunicação, mas também estratégias e novas formas de pensar, orientadas por dados e agilidade.
— A IA não é, por si só, a inovação: ela é uma tecnologia que permite que a inovação seja desenvolvida. Ela depende, sobretudo, de haver um grande volume de dados disponível. Seu diferencial é analisar esses dados rapidamente — explica o gerente da Unisinos.
A transformação tecnológica deve trazer, ainda, outro desafio: profissões que trabalham com atividades de repetição ou com esforços mais mecânicos poderão ser substituídas pela inteligência artificial. Para Bitencourt, a sociedade precisa se preparar para essa transição e habilitar os trabalhadores da economia atual para uma economia digital.
Realidade no RS
É consenso entre as pessoas ouvidas por esta reportagem que o Rio Grande do Sul é destaque nacional na área de inteligência artificial, com muitas universidades já dotadas de infraestrutura, pessoas qualificadas, parques tecnológicos e incubadoras de startups no setor. O próprio secretário estadual de Inovação, Ciência e Tecnologia, Luís Lamb, é um especialista em IA e tem buscado fomentar o conhecimento sobre o assunto no RS.
Um dos projetos de nível nacional com participação gaúcha é a criação do Centro de Inovação em Inteligência Artificial para a Saúde. Com sede na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a iniciativa envolverá uma rede de 130 pesquisadores de instituições também do RS, como a UFPel, a UFCSPA, a Unisinos, a PUCRS e a UFRGS. A proposta foi contemplada em maio em um edital da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações e receberá R$ 1 milhão anual, por até 10 anos, para desenvolver estudos das tecnologias de IA para a investigação de prevenção e qualidade de vida, diagnóstico, prognóstico e rastreamento, medicina terapêutica, gestão de saúde, epidemias e desastres.
Em nível estadual, no programa Inova RS a inteligência artificial é vista como uma tecnologia estratégica para os setores prioritários da economia gaúcha – o entendimento é de que o agronegócio, por exemplo, só crescerá nos próximos anos se utilizar tecnologias de IA na base de seus projetos.
— Os países ocidentais têm desenvolvido estratégias agressivas de inteligência artificial, que fomentam desde a formação de pessoas até investimento em empresas e projetos. Esta é uma tecnologia que não é restrita a um determinado setor da economia ou plataforma: ela se aplica a todos os setores da economia e da sociedade — analisa Lamb.
Sendo a inteligência artificial transversal, seu impacto, conforme o secretário, é não só econômico, mas ético, de valores, de confiança e de mercado de trabalho. Por isso, a criação de marcos regulatórios para essa área dependem de debates aprofundados, que considerem todos os aspectos do assunto, por um lado, mas, por outro, não “engessem” o desenvolvimento de tecnologias.