Foi ouvindo Feeling Good, de Nina Simone, que a engenheira de software Cynthia Zanoni, 30 anos, inspirou-se para desenvolver a primeira versão de uma borboleta colorida que viria a ser a marca da entidade sem fins lucrativos WoMakersCode. A letra da música fala sobre recomeço e cita o revoar das borboletas como o significado de que algo grande está acontecendo. No caso de Cynthia, foi exatamente o que ocorreu. A iniciativa fundada por ela em 2015 é hoje a maior comunidade de mulheres na tecnologia da América Latina.
E assim como a WoMakersCode, que tem o objetivo de tornar a carreira na tecnologia acessível a todas as mulheres por meio da oferta de cursos gratuitos, Cynthia viu a própria trajetória profissional ser impulsionada enquanto abria caminho a outras neste setor ainda predominantemente masculino. Desde 2016, ela trabalha na Microsoft. Mas a história da ex-moradora de Alvorada precisa voltar alguns anos porque as asas da borboleta Cynthia, como ela se identifica, começaram a bater ainda na infância.
Inquieta e com sede de conhecimento, ela teve o primeiro contato com a tecnologia aos oito anos, quando visitou a casa dos avós e passou a usar o computador do tio, o vigilante Fernando Zanoni, uma das pessoas que a incentivou no mundo tecnológico. Foi dele que ela, aos 14 anos, herdou os primeiros livros e CDs sobre sistema operacional, montagem e programação. A paixão pelo tema foi tanta que Cynthia propôs à família trocar a festa de 15 anos pela compra de um computador usado, que lhe permitisse estudar ainda mais. Quando não estava em aula, a garota que detestava educação física, mas amava matemática e física, tinha como passatempo preferido criar e experimentar possibilidades no computador. A primeira página montada por ela, que sorri quando lembra, foi uma enciclopédia Pokémon, falando sobre os poderes de cada personagem.
Os pais de Cynthia, uma artesã e um cobrador de ônibus, de 59 e 60 anos, respectivamente, sempre apoiaram as decisões da filha. Inclusive, quando ela sugeriu fazer estágio como secretária durante o dia e cursar o Ensino Médio à noite. A meta da jovem era reunir dinheiro suficiente durante três anos para pagar um curso técnico em informática em Porto Alegre, quando concluísse a escola. Para isso, o pai precisaria levá-la e buscá-la nas aulas noturnas.
— Na época, eu via apenas duas realidades muito próximas: engravidaria na adolescência, ou, no máximo, trabalharia em Porto Alegre e voltaria para dormir em Alvorada. Mas minha mãe, que tem sequelas de poliomielite, sempre foi uma inspiração para mim. Ela nunca ficou parada. Então, eu não quis parar e viver aquela realidade prevista. Comecei a me movimentar — conta.
Enfrentando o machismo
Focada, Cynthia conseguiu reunir dinheiro suficiente para arcar com os custos do curso técnico durante dois anos. Na mesma época, começou a atuar como desenvolvedora. Mas no primeiro estágio na área, enfrentou o machismo no processo de seleção. Candidata a uma vaga como desenvolvedora, acabou contratada e direcionada pela empresa para trabalhar no suporte técnico. A justificativa era porque não havia mulheres desenvolvedoras e ela poderia não se adaptar a um ambiente apenas com homens. Como precisava do salário e da experiência, Cynthia submeteu-se à função determinada pela empresa durante um ano. No segundo estágio, já como desenvolvedora, enfrentou, outra vez, situações tóxicas que lhe levaram a deixar o trabalho em 2009.
A democratização do acesso à internet é algo que está conseguindo fazer com que as pessoas consigam ter voz
CYNTHIA ZANONI
engenheira de software
— Somos programadas pelo sistema a nos tornarmos pessoas extremamente tolerantes e acharmos que tudo faz parte do processo (como piadas machistas), só que não faz. A democratização do acesso à internet é algo que está conseguindo fazer com que as pessoas consigam ter voz — comenta
Depois do técnico, Cynthia ingressou no curso de sistemas para a internet na Faculdade de Tecnologia Pastor Dohms. Logo foi contratada como desenvolvedora numa agência em Porto Alegre. Nem o fato de não saber falar inglês na época a impediu de impulsionar a própria carreira, sempre buscando conhecimento junto aos colegas mais experientes.
A WoMakersCode surgiu durante a faculdade, quando professores chegaram a sugerir a ela e outra colega, as únicas mulheres numa turma de 60 alunos, a mudarem para Administração ou Psicologia. Motivada a mudar a situação, já envolvida em comunidades de tecnologia, Cynthia reuniu amigas que gostavam do tema. Juntas, criaram workshops gratuitos nos quais ensinariam mulheres a usarem o computador. Nos primeiros dois meses, viajaram a cidades onde tinham amigos e familiares. As primeiras foram Pelotas e Gaurama. Basicamente, as alunas recebiam introdução à tecnologia e ensinamentos básicos sobre como usar as redes sociais.
Na sequência, o grupo passou a fazer laboratórios de programação para mulheres, em parcerias com faculdades e escolas técnicas. Eram oficinas de oito horas com introdução à programação, acessibilidade à web e como montar uma página na internet.
— No decorrer de 2015, conseguimos uma parceria com a Fundação Mozilla para fazermos uma ação chamada Maratona WoMakersCode. Conectamos as brasileiras que faziam parte dos projetos da Mozilla e fizemos um final de semana de aulas simultâneas de programação em 16 cidades do Brasil. Foi onde o nosso nome cresceu — recorda.
A partir daí, a WoMakersCode ganhou vida própria nas redes sociais. Cynthia revela que acreditava no despertar de um interesse, por ser um assunto novo entre as mulheres. Mas não imaginava o entusiasmo gerado em torno do tema.
— Este período entre 2015 e 2016 foi o ano em que mulheres, de forma geral, começaram a colocar o pé na porta: “Eu também quero fazer tecnologia”. E a gente faz parte deste empurrão — revela, com orgulho.
E foi durante um evento da BrazilJS, em Porto Alegre, que ela conheceu um gerente da Microsoft. Entusiasmado com a fala da desenvolvedora durante uma palestra, o representante da empresa de softwares a convidou para trabalhar na área de relações com desenvolvedores. Basicamente, seria para falar sobre tecnologia e cativar os pares. Mesmo interessada na vaga, não aceitou de imediato.
Prêmio e mudanças
No início de 2016, por ser considerada uma liderança em diversidade, Cynthia foi premiada pela Mozilla com uma viagem a Singapura, lhe fazendo perceber um mundo de possibilidades na área em que atuava. Na volta a Porto Alegre, mudou de emprego, de cidade e de estado civil. Em 8 de março de 2016, passou a morar em São Paulo e trabalhar como evangelista técnica da Microsoft. Era a única mulher do time. A função era o que antes ela fazia nas horas vagas: ir a eventos, atender startups, falar sobre tecnologia, testar e ensinar novas tecnologias. Ao mesmo tempo em que iniciava um novo passo na carreira, casou-se com o designer Lucas Coiro, 38 anos, com quem namorava desde os tempos do curso técnico frequentado por ambos.
Queremos preparar essas mulheres para irem ao mercado de trabalho, não só para chegarem, mas para ficarem e crescerem
E ainda havia a WoMakersCode, que não parava de crescer. O grupo passou a oferecer bootcamps de mais de 200 horas de treinamento, focados em programação e ciência de dados. No ano passado, desenvolveu o hacking de carreira, de maio a julho, ajudando 17 mil mulheres de forma online na transição profissional.
Há alguns dias, sete anos depois do início, a WoMakersCode se tornou entidade sem fins lucrativos, que já atingiu mais de 200 mil mulheres no Brasil. A partir de agora, a meta é expandir parcerias com empresas e ter viabilidade de oferecer mais formações. Hoje, há braços da iniciativa em Nova York, nos Estados Unidos, Toronto, no Canadá, e Santiago, no Chile. A intenção é ver a WoMakersCode atravessar o oceano, chegando à África.
— Queremos preparar essas mulheres para irem ao mercado de trabalho, não só para chegarem, mas para ficarem e crescerem — afirma Cynthia.
Depois de um ano como evangelista técnica, a gaúcha se tornou gestora na Microsoft, onde teve a oportunidade de colocar em prática projetos de capacitação. Cynthia passou a desenvolver propostas focadas em diversidade e inclusão. No ano passado, criou o Black Woman Tech, curso voltado para pretas ou pardas desempregadas que querem entrar para o mercado de tecnologia, mas não têm acesso à formação. Na primeira edição, 40 mulheres foram selecionadas para aprenderem computação em nuvem, inteligência artificial, inglês básico e soft skills.
Neste ano, Cynthia também criou a #ElasNaIA, focado na capacitação de mulheres em fundamentos de inteligência artificial (IA) e nuvem. O objetivo é auxiliar no desenvolvimento da carreira, aumentando as chances de empregabilidade do público feminino no setor tecnológico.
Planos para o futuro
De acordo com um estudo da própria Microsoft, o trabalho de Cynthia já impactou 1 milhão de desenvolvedores na América Latina. Em janeiro deste ano, a engenheira de software fez uma transição na própria carreira: tornou-se estrategista de tecnologia no Brasil da companhia.
— Como Developer Advocate, eu falava só com desenvolvedores. Hoje, em minha nova função, converso diretamente com os CTOs das empresas sobre as melhores tecnologias e o que eles precisam fazer para crescer e se destacar no mercado.
Na área da tecnologia, ela observa mudanças importantes como a abertura para mulheres e a reinvenção das companhias.
— Antes, as empresas cobravam que o profissional se reinventasse. Agora, são elas que têm de se reinventar para conquistá-los. Ambiente tóxicos ficarão cada vez mais vazios. As empresas precisaram pensar sobre qualidade de vida e equilíbrio entre vida pessoal e profissional.
Para Cynthia, a Ciências de Dados é a função em destaque, atualmente, na tecnologia, combinando vários campos, incluindo métodos científicos, inteligência artificial, estatísticas e análise de dados para extrair valor das informações.
Na próxima semana, ela participa em Porto Alegre como palestrante de mais uma edição da BrazilJS, maior conferência da linguagem JavaScript do mundo. Desta vez, falará sobre a própria transição de carreira, de desenvolvedora para liderança em TI.
Apesar de ser considerada referência em tecnologia no Brasil, Cynthia faz questão de dizer que está longe de realizar o maior sonho: sentir que o trabalho está feito. E é exatamente essa incerteza que a motiva a seguir batendo as próprias asas, cada vez mais alto e longe. E ajudando outras mulheres a voarem também.