Quando postamos vídeos com gatinhos, fotos de família, damos likes na publicação de um amigo ou desancamos críticas a outro, estamos entregando muito mais do que imagens ou opiniões. Concedemos ao Facebook informações preciosas, dados sensíveis de nosso temperamento – se estamos felizes, tristes, com raiva, para onde viajamos ou sonhamos viajar, o que comemos no jantar de ontem ou pretendemos almoçar hoje. E o que o Facebook faz com isso?
O escândalo da Cambridge Analytica nos levou a perder a inocência e expôs o lado controverso de Mark Zuckerberg. Nos últimos dias, a agência de proteção de dados pessoais da Itália (conhecida pela sigla DPA) multou o Facebook em 1 milhão de euros por violações cometidas no caso da agência de análise de dados. O governo do Reino Unido estabeleceu multa preliminar de 500 mil libras esterlinas (US$ 664 mil) também pelo caso do vazamento de dados.
“Nós cometemos erros”, admitiu Zuckerberg, em um post no seu perfil na rede social, na primeira vez em que falou sobre a crise institucional que fez o Facebook perder quase US$ 50 bilhões em valor de mercado em dois dias. Isso foi em março de 2018. Sete meses depois das escusas, a rede social relatou que um ataque hacker conseguiu acessar os dados de mais de 29 milhões de usuários. Outro abalo sísmico na credibilidade da marca.
Estudos feitos por empresas de análise de negócios apontam queda expressiva de engajamento dos usuários (compartilhamentos, curtidas e posts). O sinal mais recente disso foi registrado pelo The Guardian, que veiculou um levantamento da Mixpanel mostrando uma queda de 20% das atividades no Facebook desde abril de 2018. De 2016 a 2017, o tempo de uso de redes sociais nos EUA subiu 10,7%, o que resultou em uma média de uma hora e 15 minutos por dia dedicada a plataformas do tipo. De 2017 a 2018, houve queda de 1,9%, com média de uso de um minuto a menos. No caso do Facebook, no entanto, a queda foi de 41 minutos diários para 38 minutos, com a expectativa de redução ainda maior em 2019.
Os escândalos alavancaram essa discussão entre legisladores europeus, que elaboraram e aprovaram o Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR, na sigla em inglês). A finalidade foi oferecer uma salvaguarda jurídica de controle e transparência aos cidadãos em relação ao uso de suas informações pessoais armazenadas nos bancos de dados das empresas, principalmente as de tecnologia. No Brasil, desde 2014, existe a lei 12.965 (o chamado Marco Civil da Internet), que estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da rede, mas não havia uma regulamentação de proteção de dados vindos de outras fontes. Só em 2018 foi editada a lei 13.709, chamada de Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que entra em vigor na sua plenitude em 2020, colocando o Brasil no mesmo nível dos países da Europa e dos EUA em relação ao combate do tratamento indevido de dados pessoais.
É inegável que o fluxo de dados e informações é essencial para o crescimento econômico na era digital, mas é vital que haja boa fé, impondo bom senso e transparência de quem lida com esses dados, penalizando excessos e definindo responsabilidades mediante o dever de indenizar.
JOÃO MEDEIROS
Advogado
– É inegável que o fluxo de dados e informações é essencial para o crescimento econômico na era digital, mas é vital que haja boa fé, impondo bom senso e transparência de quem lida com esses dados, penalizando excessos e definindo responsabilidades mediante o dever de indenizar. Por isso, organizações públicas e privadas só poderão coletar dados pessoais se tiverem consentimento expresso do titular, e a solicitação deverá ser feita de maneira clara para que o cidadão saiba seu destino e finalidade – afirma João Medeiros, sócio da Medeiros Santos & Caprara Advogados.
Na era das plataformas, a vantagem das gigantes é a quantidade enorme de dados que elas têm sobre seus usuários. Uma das discussões nos EUA se dá sobre a publicidade direcionada de acordo com a emoção deles. O Facebook é suspeito de fornecer a anunciantes ferramentas poderosas para permitir que façam marketing psicológico, aproveitando insights de seus perfis de usuários em outras atividades. Por exemplo, uma empresa pode selecionar pessoas que tiverem marcado “em relacionamento sério” nas redes e vender especificamente para elas produtos relacionados a namoro, lar, “com a suposição de que estão apaixonados”, explica Parham Eftekhari, diretor-executivo do Critical Infrastructure Technology (ICIT), centro especializado em cibersegurança com sede em Washington. Outra suspeita de ação nefasta na publicidade seria, com base em análise de dados adquiridos, uma empresa de marketing procurar por “quem está triste nos EUA” para comercializar, por exemplo, antidepressivos.
– A lei permite que empresas de tecnologia coletem dados e os usem como quiserem desde que divulguem sua política de privacidade em uma área de termos e condições na plataforma. Mas poucos leem os termos. A maioria ignora e clica no “eu aceito”. Estão trocando privacidade e, em certos casos, segurança por conveniência – alerta Parham Eftekhari.
A autoridade francesa de proteção de dados aplicou uma multa recorde de 50 milhões de euros à Alphabet, controladora do Google, por não informar claramente seus usuários sobre sua política de uso de dados.
O ódio que não tem freio
No epicentro do debate estão questões éticas. Em geral, quando questionadas, as empresas de tecnologia costumam dizer que não têm responsabilidade por conteúdos tóxicos ou mentirosos, como as fake news. Afinal, são indivíduos que os publicam. Google e Facebook apenas servem de canal de distribuição. A omissão, contudo, já está custando dinheiro. Em 2018, a Unilever, um dos maiores anunciantes do mundo, ameaçou deixar de investir nas plataformas digitais por entender que Google e Facebook não estariam fazendo o suficiente para policiar conteúdos extremistas e ilegais.
Neste ano, durante o Festival de Criatividade de Cannes, grandes players de mídia lançaram a Aliança Global para Mídia Responsável. Além da Unilever, estão à frente da iniciativa Procter & Gamble Co, Adidas, Bayer, Danone, Mastercard, Nestlé, Shell e outras. Também participam da aliança grandes agências de publicidade e publishers. Essas empresas querem identificar ações para proteger consumidores online, trabalhando em um ambiente de mídia contra discursos de ódio e desinformação.
Uma das discussões sobre os limites às plataformas de tecnologia diz respeito à regulação. Enquanto veículos de comunicação e agências de publicidade são regulados e auditados, ninguém fiscaliza as plataformas digitais. Segundo Rodrigo Borer, ex-CEO da Buscapé, Google e Facebook se assumem como plataforma de distribuição de conteúdo quando convém, mas também produzem conteúdo.
– Não é auditado por ninguém. não é regulado por nada. As práticas deles são eticamente questionáveis. De fato, eles fazem mal ao mercado – afirma Borer.
O Facebook tem chegado a parcerias com alguns dos maiores eventos esportivos do mundo como parte de sua aposta em vídeos. Adquiriu, por exemplo, os direitos de transmissão da Copa Libertadores para a América do Sul. Em abril, o YouTube anunciou sua própria divisão especializada na criação de conteúdo interativo para o site. No Brasil, a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) defende liberdade de expressão com responsabilidade.
– Já se teve conteúdo pedófilo, racista, discriminatório e pouco foi feito. Agora, estão se dando conta de que é melhor estabelecer intervenções técnicas, tutoriais, sob pena de sofrerem uma intervenção legal pelos órgãos reguladores, como se discute nos EUA e na Europa – avalia o diretor da Abert, Cristiano Lobato Flores.
Em junho, o YouTube anunciou a proibição de vídeos que promovam o racismo e a discriminação, bem como aqueles que neguem episódios como o Holocausto ou o massacre na escola de Sandy Hook. O anúncio da plataforma de vídeos do Google faz parte de uma série de ações para filtrar conteúdos de ódio. “Hoje estamos dando novo passo em nossa política contra o discurso de ódio, proibindo de forma específica os vídeos que aleguem que um grupo é superior para justificar a discriminação, segregação, ou exclusão baseada na idade, gênero, raça, casta, religião, ou orientação sexual”, afirmou o YouTube em seu blog. No caso do massacre em duas mesquitas de Christchurch, na Nova Zelândia, transmitido ao vivo na plataforma pelo assassino, o Facebook foi acusado de demorar demais para retirar as imagens do ar.
Já se teve conteúdo pedófilo, racista, discriminatório e pouco foi feito. Agora, estão se dando conta de que é melhor estabelecer intervenções técnicas, tutoriais, sob pena de sofrerem uma intervenção legal pelos órgãos reguladores, como se discute nos EUA e na Europa.
CRISTIANO LOBATO FLORES
Diretor da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão
No Brasil, Flores alerta sobre conteúdos ilícitos vinculados a propaganda lícita, como um anúncio de cerveja em meio a conteúdo racista, ou propagandas indevidas durante exibição da programação infantil – bebidas alcóolicas chegaram a interromper um desenho da Peppa Pig.
– As plataformas não se submetem às regras do Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar), do Conselho Executivo das Normas-Padrão (Cenp). Não são auditados por ninguém – observa Flores.
Google e Facebook, mais do que nunca, ajudam a desenvolver hábitos sociais e de consumo.
– O Google dita tendências. Se ele quiser acabar com sua empresa, vai fazer isso, porque ele decide que você não vai aparecer mais na internet. O algoritmo do Google é a fórmula da Coca-Cola: eles podem tomar a multa que for, mas jamais vão mostrá-lo – diz Rodrigo Zingales, advogado especializado em impactos concorrenciais das companhias digitais.
O poder das plataformas na vida das pessoas é imenso e virou até uma expressão: plataformização. Segundo o professor Fábio Malini, coordenador do Laboratório de Pesquisa sobre Imagem e Cultura da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), que realiza o pós-doutorado no Kings College, em Londres, nossa rotina mediada por Google e Facebook e outros aplicativos preocupa as autoridades e o meio acadêmico.
– É a plataformização do trabalho, da imprensa, de tudo o quanto é tipo de relação. Essas empresas passaram a ser vistas como algo que desestabiliza democracias e culturas – avalia.
Ele conta que, na escola do filho, houve crise de sarampo. Acredita que pais aderiram ao movimento antivacina desde que “foi propagado pelas redes sociais”.
– Houve aumento da circulação da ignorância. A ignorância tem dado likes. E, no caso do movimento antivacina, essa ignorância tem provocado mortes – afirma.