Pessoas comuns estão sendo mais efetivas para espalhar fake news do que robôs. Em grande parte, isso deriva da dúvida que paira sobre fatos não esclarecidos e do envolvimento emocional com os episódios que se tornam alvo de correntes de notícias falsas. As avaliações são do professor Fábio Malini, do Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura (Labic), da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). O Labic se tornou referência nacional com estudos sobre o comportamento dos indivíduos e das ondas de engajamento em fatos que convulsionaram as redes sociais, como os protestos de 2013, a Copa de 2014 e, recentemente, mapas de repercussão no Twitter da condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do assassinato da vereadora Marielle Franco.
– Quem matou Marielle? O meu afeto vem primeiro do que a minha cognição. Se detesto o PSOL, imediatamente sou simpático às notícias que a detonam. É uma audiência e um sistema que hipervaloriza a lógica de bolhas – avalia Malini.
A entrevista foi concedida por telefone a ZH.
O whatsapp é o grande propagador de fake news?
Essa é uma hipóteses sem evidências. O problema é que o WhatsApp é um dispositivo privado. Não temos evidências de como funciona. As correntes de WhatsApp são semelhantes às de e-mails. Nas eleições de 2006, quando o e-mail teve papel fundamental, havia listas de discussões, e do nada aparecia uma corrente do tipo "Dilma está apoiando o aborto". E-mail é também um dispositivo privado, nunca se sabia de onde vinha aquela informação. Hoje, o Twitter e ainda mais o Facebook são os maiores propagadores.
Ambos trabalham com a ideia de que todos têm o direito de mentir. É só arcar com as consequências. Não dá para chegar e falar: "Você não pode publicar uma mentira". Todo cidadão pode mentir ali. No Facebook, as pessoas podem publicar o que quiserem. Se forem questionadas eticamente, o Facebook diz: "Não tenho nada a ver com isso. A pessoa que responda". Tem uma certa negligência nisso tudo, mas amparada no direito de liberdade de expressão radical. O Facebook também é protegido pelo marco civil da internet, que estabelece que, tomando as medidas cabíveis, por exemplo, remover posts, banir determinado usuário, a plataforma fez o que tinha de fazer. Isso acaba dando a ela um porto seguro. Enquanto não for acionada juridicamente por um conteúdo, não tomará providências.
Quais são as alternativas para resolver isso?
A única alternativa para que haja uma plataforma com mais qualidade de informação é que a comunidade que está presente nela denuncie.
É uma perspectiva otimista. As pessoas estão preparadas para identificar o que é falso? Não seria o caso de estudar outras medidas, como a regulação dos algoritmos?
Sem dúvida. As pessoas estão na sua bolha e não denunciam quem tem a mesma identidade que elas. Sobre a proteção de informações pessoais, sou favorável ao debate e à regulação. Sempre prestando atenção à inovação: é importante proteger os dados, mas garantindo que se alimente a inovação. Na área da saúde, por exemplo: temos um dos maiores biobancos, o da Fiocruz, que guarda todos os exames de sangue da época do zika vírus, com os dados pessoais protegidos, mas sem perder a função de nos ajudar a entender a epidemiologia. Esse debate é muito relevante para que a privacidade seja garantida e para que se garanta que esse universo de dados possa ser trabalhado de maneira inteligente para criar inovação.
O Brasil não pode ficar para trás. A própria comunicação política: acho importantíssimo que se comece a trabalhar com análise de comportamento político a partir de dados na internet. Mas tem de proteger as informações das pessoas, tem de haver regras que balizem tanto as pesquisas científicas quanto as pesquisas de mercado. Não dá para o país simplesmente parar e não estudar esse campo. Só que muitas vezes o discurso da privacidade no caso do Facebook é usado para fechar, transformar sua base em uma caixa-preta. Aí não conseguimos descobrir quem compartilhou um link. Só quem sabe é o Facebook, que pode disponibilizar ou não a informação.
Existem, no Brasil, grupos organizados que fabricam fake news?
No Brasil, não há um problema realmente grande de notícias falsas, com centenas de sites. O que temos forte são as notícias distorcidas, ou o chamado caça-clique. E aí não é só em política. Há isso na saúde, na segurança, em diferentes setores.
Por que as fábricas de notícias falsas não se propagam no Brasil como em países do leste europeu, por exemplo?
O mundo inteiro está assolado pelo fenômeno da ultradireita. Boa parte do conteúdo que a gente está chamando de notícia falsa deriva desse campo político. Ao mesmo tempo, no Brasil, há uma estrutura de imprensa tradicional e de opinião que, mesmo errando, se equivocando, forma um ecossistema muito forte em relação à audiência. Quando há algum conteúdo que foge ao padrão dessa imprensa, esse conteúdo é logo identificado e denunciado.
Os maiores propagadores de conteúdos distorcidos são as pessoas com interesses escusos, em geral financeiros, ou aquelas quem se sentem mais livres para ter um engajamento?
Acho que é uma composição das duas coisas, dependendo do campo. Na política, na maior parte dos casos, há ganho financeiro. O sujeito que fica horas produzindo, refazendo títulos, clipando conteúdos, enfim, ele dedica muito tempo a isso. Sem recursos financeiros, não há ideologia que faça uma pessoa ficar trabalhando tanto.
As redes sociais eram uma esperança de liberdade, mas mostraram seu lado perverso com as fake news que podem ter influenciado o Brexit, a eleição nos EUA e o referendo na Catalunha. Em que momento as redes sociais mudaram tanto?
A população se distribui em distintas redes sociais, sendo o Facebook a maior delas. Grande parte dessas plataformas começou a investir em algoritmos que regulam a atenção dos usuários, e isso tem a ver com as bolhas. O governo algorítmico das pessoas em rede virou vítima de sua própria moral, que é o fortalecimento de laços sociais baseados na identidade ideológica, e não na alteridade. Esse processo foi ganhando força de 2010 para cá, com o trabalho da regulação algorítmica. Foi isso que criou essa toxicidade.
Se você pegar a própria imprensa, qual foi a regulação algorítmica (das redes sociais) em cima da imprensa? Reduzir o alcance das páginas dos veículos de comunicação. O consumo de informação nessas plataformas acabou ocasionando o crescimento de páginas que usam aplicativos para ganhar organicidade, ou seja, tentando burlar, fraudar os algorítimos de um lado ou se adaptando a eles com o impulsionamento pago nas redes, alimentando seu sistema financeiro.
As bolhas são tóxicas e tornam os ambientes mais belicosos?
Sim. A desembargadora Marília Castro Neves, do TJ-RJ, fez um comentário sobre uma fake news sobre a vereadora assassinada Marielle Franco. Ali há um processo de naturalização, ela está falando com os pares dela, aqueles que ela tem convicção de que têm o mesmo ponto de vista sobre esse acontecimento. No fundo, é uma identidade que se cria. É como começar a usar uma roupa. Começar a usar vermelho porque todos os amigos estão usando vermelho. É um sistema de proteção. A contradição, a diferença ou colocar-se no lugar do outro deixa de ser uma prática. Pelo contrário, a prática é não se colocar no lugar do outro e só agir em função do que meu grupo quer. É um efeito da dimensão algorítmica.
Essa dimensão constitui um núcleo de pessoas com opiniões semelhantes, que passa a se abastecer de informação somente ali dentro, de acordo com a sua ideologia. É isso?
Sim. Tem outra coisa: isso alimenta o feed, a nossa timeline, que se forma baseada nessa estrutura. A tendência é que os veículos caça-cliques, que têm uma orientação ideológica bem determinada, começam a aparecer mais no feed que se identifica com essa orientação do que aqueles veículos que trazem informação que é correta, mas que desestrutura essa identidade previamente formada. A verdade incomoda o status quo. Como não há notícia que incomoda, aquilo vira uma ilha da fantasia de pessoas que pensam igual. Cada vez que surgem publicações que estão associadas ao modo de pensamento da turma, o algoritmo é alimentado, e o algoritmo alimenta o feed. É um ciclo viciado.
O senhor consegue ter uma perspectiva otimista?
Há também espaços minúsculos que passam a ter a possibilidade de cultivar um tipo de audiência que permite que sua voz ecoe. Claro que isso não está no campo das maiorias, mas, em algum momento, quando se dispara um acontecimento que se torna paradigmático, como um ato racista, xenófobo ou misógino, essas vozes se unem, em uma espécie de movimento de um compartilhando o outro, o que acaba alcançando um público maior. Quando o ato é sincronizado, esses espaços minúsculos se ampliam. Isso não ocorre no dia a dia, mas apenas em determinados casos.
O instagram cresceu e já é a segunda maior rede social. por que as tretas estão sempre no facebook ou no twitter?
O Instagram é uma rede social com recursos de conversação mais limitados. Um exemplo: se o usuário quiser comentar publicando um gif, não vai conseguir. A publicação de stories dura só 24 horas. Tem uma memória que se apaga, que eu acho que é a coisa mais interessantes tanto do Instagram quanto do Snapchat. Você não permitir que a memória fique, porque as pessoas também cometem equívocos, fazendo algo sumir, pode ser interessante para que não se volte a um tipo de conteúdo quando se mudou de opinião. Isso retoma a ideia de que as coisas também precisam ser esquecidas. Se a pessoa comenta no stories, é privado, não fica exibido publicamente. Publicar imagens frequentemente não é algo tão fácil como publicar um texto. Imagem expõe mais. Tem isso, também.
No Instagram, existem as contas. Não há páginas e perfis. É algo parecido com o Twitter, e diferente do Facebook, que criou uma tipologia - evento, pessoa, página, grupo - com modos de interação diferentes. Tudo isso faz com que o Instagram não seja uma rede propícia para as tretas.
No caso da vereadora assassinada Marielle Franco, criou-se uma onda de notícias falsas largamente difundidas por grupos de extrema-direita. É um exemplo bem acabado de como as pessoas operam dentro desses ecossistemas?
Por um lado, sim, porque você tem essa montagem de ecossistemas que propagam conteúdos com visões ideológicas bem definidas. Naquele caso, era "Marielle protege bandido", "Marielle está envolvida com bandido". Por outro lado, há uma segunda dimensão: os estudos demonstram que a força dos boatos está na fragmentação da sua circulação. Notícias falsas e distorções circulam não por conta de centros que as disparam, mas pela ação das pessoas comuns, que espalham para seus familiares, colegas, amigos, às vezes para protegê-los: "Vai chover para caramba, não sei se esse instituto de meteorologia é verdadeiro, mas estou compartilhando com vocês, é melhor vocês não saírem de casa".
O trabalho da pessoa comum é muito relevante nisso tudo. É ela é que vai legitimar a força de um boato. No caso da Marielle, foram as pessoas comuns, mais do que os robôs, as responsáveis pelo dimensionamento das fake news. Porque as pessoas queriam mostrar para seus pares que tinham razão em suas crenças sobre a vereadora. Um dos papéis importantes nesse processo é de quem tem, mesmo que minimamente, poder de influenciar um pequeno grupo.
Como assim?
É por isso que a gente fala tanto do WhattsApp: trata-se de um dispositivo que nos liga a um número reduzido de pessoas: grupo da família, do futebol, dos colegas de aula, de trabalho. Nesses grupos, justamente por serem pequenos, você acaba tendo uma atuação marcante. O caso da Marielle constitui mais um episódio de circulação de boatos que funcionaram em função do nível de incerteza e de envolvimento emocional das pessoas.
Quem matou a vereadora? O meu afeto vem primeiro do que a minha cognição, daí a importância dos grupos pequenos, onde o afeto está bem concentrado. Se detesto o PSOL, imediatamente simpatizo com aquelas notícias que detonam a Marielle. E tendo a compartilhá-las, por impulso, rapidamente, porque elas atendem a anseios que eu tenho. Trata-se de uma audiência e de um sistema que hipervaloriza a lógica de bolhas.