Em 21 de janeiro, data em que é celebrado o Dia do Combate à Intolerância Religiosa, o monumento em homenagem à orixá Oxum, instalado há 24 anos na orla do Guaíba, em Ipanema, na Zona Sul de Porto Alegre, amanheceu vandalizado. O caso foi registrado junto à Delegacia de Polícia de Combate à Intolerância (DPCI).
— É inaceitável que, em pleno 2024, esse tipo de situação continue ocorrendo. Se não houver um freio, isso pode terminar em outras ações mais violentas como ocorre no Rio de Janeiro ou na Bahia, onde colocam fogo nos templos. Temos medo de algum crime contra a vida — diz o babalorixá José Antônio Salvador, 58 anos, presidente da Federação das Religiões Afro-Brasileiras (Afrobras).
Mas essa depredação não foi um caso isolado. Segundo dados fornecidos pela Secretaria de Segurança Pública do Estado, o número de registros policiais por preconceito religioso teve aumento de 250% nos último três anos no RS, passando de 20 casos em 2021 para 70 em 2023. Em Porto Alegre, cidade onde houve o maior volume de registros, o número de casos passou de 11 em 2021 para 29 em 2023, um aumento de 164%.
Titular da DPCI, a delegada Tatiana Bastos explica que a tipificação de ocorrências por preconceito religioso só passa a existir no RS a partir de maio de 2021. Antes disso, não havia como apurar o volume de registros relacionados a este tipo de crime no Estado.
Subnotificação e racismo religioso
Devido à falta de conhecimento por parte da população e à necessidade de capacitação dos agentes de Segurança Pública sobre a existência dessa classificação, a delegada estima que haja uma subnoficação dos casos, que podem ser ainda mais numerosos. Ela também diz que a maioria das ocorrências se referem a agressões contra religiões de matriz africana.
— Infelizmente, a maioria das situações ainda não é registrada, talvez até por um esconhecimento das entidades, aos povos de terreiro, que geralmente são os mais afetados. As religiões de matriz africana acabam sendo quase a totalidade dos casos e por isso a gente fala que não é só uma intolerância religiosa, mas um racismo religioso. Mais uma vez a gente tem aqui como um plano de fundo a cor, o preconceito em razão da cor, mas aí mais especificamente a religiosidade de matriz africana e dos povos de terreiro — diz a delegada.
Segundo Tatiana, antes da classificação de crime por preconceito religioso, as ocorrências eram registradas em diferentes tipificações como perseguição, ameaça, injúria discriminatória, lesão corporal, ou perturbação do sossego alheio.
— Muitas vezes, essa é a denúncia que se faz e, quando se vai investigar, se percebe que não é pelo barulho. Não é uma perturbação do sossego. Aquela pessoa que foi acusada, muitas vezes, acaba sendo vítima de um preconceito em razão da religião — sublinha.
A titular da DPCI ressalta a importância do registro junto à Polícia Civil para que possa ser aberto um inquérito para investigar os casos de intolerância religiosa, com depoimentos de testemunhas, coleta de provas e verificação de câmeras de videomonitoramento, como foi feito no caso da depredação ao monumento a Mãe Oxum. Além disso, ela comenta que, além do trabalho punitivo, a delegacia também foca em ações preventivas e educativas voltadas à conscientização da comunidade.
— À Polícia Civil compete a responsabilização criminal, punir as pessoas que cometem esse tipo de delito, mas a gente sabe que a punição em si tem um efeito secundário ou até terciário, com cumprimento de pena, alguma medida ou sanção. Mas o principal é realmente a prevenção primária, é alterar essas dinâmicas e essas lógicas de violência que são extremamente perversas, cotidianas, muitas vezes silenciosas, veladas, e que causam um grande prejuízo para a nossa sociedade, não só no que tange o nosso desenvolvimento social, a inclusão social, mas também ao próprio desenvolvimento econômico do país — reitera.
Casos aumentam 60% em um ano no país
No Brasil, os casos de intolerância religiosa tiveram aumento de 60% em 2023 na comparação com o ano anterior. No RS, o aumento foi de 59% no mesmo período. Dados divulgados pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania em janeiro revelaram que o Brasil contabilizou 1.478 denúncias relacionadas à intolerância religiosa no ano passado.
Em 2022, foram registrados 898 casos, em diferentes regiões do país. Assim como no RS, as religiões de matriz africana foram as mais afetadas. Conforme a Ouvidoria da pasta, as pessoas violadas com mais frequência são pertencentes, nessa ordem, às religiões Umbanda, Candomblé, outras declarações de religiosidades afro-brasileiras, evangélicos e católicos.
Patrimônio histórico-cultural
O monumento à Mãe Oxum foi esculpido em ferro pelo artista Beto Babão e inaugurado em Ipanema em 8 de dezembro de 1999. O local foi escolhido pois há cerca de 30 anos aquele trecho da Orla já serve como ponto de celebrações e cerimônias religiosas. Em julho do ano passado, a imagem foi tombada como patrimônio histórico-cultural de Porto Alegre.
Oxum ou Osun é o nome de um rio situado no sudoeste da Nigéria. A orixá é a divindade protetora dos rios, lagos e cachoeiras e representa a beleza, o amor, a fertilidade, o ouro e a riqueza. No sincretismo católico, Oxum corresponde a Nossa Senhora da Conceição e Nossa Senhora de Aparecida. O dia de Oxum é celebrado pelas religiões de matriz africana em 8 de dezembro.
Intolerância na véspera de Natal
Na manhã do dia 24 de dezembro, véspera do Natal de 2023, duas mulheres e um homem se prostraram em frente a um templo religioso de matriz africana, localizado no bairro Feitoria, em São Leopoldo, no Vale do Sinos, e iniciaram o seguinte diálogo.
Homem: — Pastora, vou quebrar a placa (a fachada de vidro) com uma pedrada.
Pastora: — Hoje não… Vamos passar todos os dias aqui para convertê-lo, vamos ganhar no cansaço.
Mulher 2: — Vamos orar aqui na frente, agora, para expulsar o demônio desse lugar.
Após isso, depositaram um panfleto com o nome da igreja à qual pertenciam na caixa do Correio e foram embora. O templo é conduzido pelo babalorixá Marcello D'Ògún Oníré, que observou toda a movimentação pelas câmeras de videomonitoramento instaladas na portaria do ilê e conectadas ao seu telefone celular. Ele compartilhou o fato em suas redes sociais e registrou um boletim de ocorrência junto à Polícia Civil, mas ressalta que esta não foi a primeira vez que enfrentou situações de preconceito em seus mais de 30 anos de religiosidade.
— Muitas vezes, eu saio na rua de branco, com as minhas guias de contas no pescoço e cansei de pessoas passarem por mim, fazerem o sinal da cruz, ou de ir num supermercado e as pessoas não irem atrás de ti na fila, mesmo que a tua fila seja a menor, como já aconteceu comigo. As pessoas desviam, elas fazem cara feia, elas cortam caminho. São diversas situações que ocorrem no dia a dia. Eu sempre falo que o povo do axé é um povo de paz, é um povo tranquilo. A gente acaba normalizando isso — comenta.
O ato de preconceito religioso repercutiu e até mesmo a prefeitura de São Leopoldo publicou uma nota de repúdio. No dia 22 de janeiro, foi realizado um ato interreligioso no Ilê de Oxalá Jobokum e Ògún Oníré em alusão ao Dia de Combate à Intolerância Religiosa que contou com a participação de diversos representantes de religiões de matriz africana e também do padre católico Raimundo Nonato Resende, reitor do Santuário Santuário do Sagrado Coração de Jesus (do Padre Reus)
— As pessoas que cometeram esse ato poderiam estar em casa com seus familiares na véspera de Natal ou estar na rua nas vilas levando presentes e alimentos pras crianças em situação de vulnerabilidade social, mas não, elas estavam fazendo o que? É isso que me dói, e nós, como povos tradicionais de matriz africana, necessitamos dar um basta nisso. É o que eu digo para as pessoas, quando acontecer um ato de intolerância, de racismo religioso, não entre no atrito. Fuja do atrito, fuja da briga, da discussão, mas procura teu direito, faz um B.O., procura um advogado, e vai para cima, vai ter que ser esse o jeito — finaliza o babalorixá.
Como denunciar
Casos de preconceito religioso podem ser denunciados pelos seguintes meios:
- Disque 100 – Disque Direitos Humanos
- Disque Denúncia 181
- Delegacia de Polícia de Combate à Intolerância (DPCI): pelos telefones (51)3224-6086 ou (51)3338-6440; ou pessoalmente, na Avenida. Pres. Franklin Roosevelt, 981, São Geraldo, Porto Alegre.