Sentado em um trono a três metros do chão e com quase dois de altura, Belzebu, corpo preto musculoso, com chifres e asas, pentagramas dourados e uma cobra na barriga, todo feito de fibra de vidro, chama atenção dos passageiros de um ônibus que passava devagarinho no final da manhã desta quarta-feira (22) em frente ao muro de uma casa no bairro Bela Vista, em Alvorada, na região metropolitana de Porto Alegre. A imagem com corpo de homem e cabeça de bode é uma homenagem em frente à casa da Mãe Michelly da Cigana. O monumento está instalado desde novembro de 2022, e ficou famoso neste mês de março.
Uma foto da estátua repercutiu nas redes sociais e rendeu polêmica entre aqueles que não conhecem a religião da qual ele faz parte. A vizinhança está acostumada com a figura, talvez sem saber que ele é uma divindade da quimbanda, religião de matriz africana. Atrás de Belzebu há uma casa com três salões para rituais de outras duas linhas espirituais.
— Os vizinhos já conhecem minha atividade, a religião, o movimento de clientes e rituais na rua. Não mudou nada, ninguém reclamou nem elogiou. A primeira vez que ouvi ou li algo negativo sobre a estátua foi nas redes sociais na segunda-feira (20). Belzebu cuida de mim, desta casa e da minha saúde. Ele abre os nossos caminhos — explica Michelly Bernardes, 44 anos, mãe de santo que mora e trabalha em Alvorada desde 2016.
Diferentemente da fé católica, que faz a figura de corpo humano e cabeça de bode com grandes chifres ser associada ao mal, Belzebu e outras entidades Exu não têm uma natureza maléfica, alerta a mãe Michelly. Ela escolheu Belzebu como divindade em 2014, quando já tinha uma casa que fazia cultos religiosos.
— Não tenho medo da repercussão. Me “malham” na internet mas não dou bola. O que me fez bem na vida foi me posicionar, tenho que mostrar o que eu pratico. Nunca tive a chance de explicar, acho que essa é a hora. Construir a figura de Belzebu foi uma maneira de prestar homenagem a esta divindade que me acompanha e fez tanto por tanta gente que me procura pedindo a ajuda dela — conta.
O doutor em antropologia e pesquisador de religiões de matriz africana na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Marcelo Tadvald reforça a explicação:
— A quimbanda diz que os exus, as pombagiras e outra entidades eram pessoas que fizeram parte da formação da nossa sociedade, participantes de estruturas complexas. Mas não há neles uma função de fazer o mal, esta conotação vem do imaginário católico que o associou a demônios — detalha o professor.
Sorridente, com um vestido dourado cheio de brilhos, brincos, anéis e tinta vermelha nas unhas, Michelly abriu as portas de sua casa para a reportagem de GZH na manhã desta quarta-feira (22).
Além do culto a Belzebu, da quimbanda, a casa também reúne interessados em Oxalá, divindade da umbanda, e a personagens que representam o sincretismo religioso entre o catolicismo e as de matriz africana, como São Jorge e Ogum, Xangô e São Jerônimo, Nossa Senhora Aparecida e Oxum - para quem Michelly escolheu a vestimenta para fazer um vídeo mostrando os salões de umbanda no TikTok.
Um dos espaços onde ocorrem práticas espirituais na casa da Mãe Michelly tem estátuas com feições humanas, oferenda de doces, comidas e bebidas a elas, velas de cores claras e aromas perfumados tomando circulando por ambientes arejados e iluminados.
— São energias diferentes que cada entidade e divindade passa. O lado da casa para a quimbanda, com o Belzebu, é uma energia pesada, de força, mas não ruim, enquanto o outro lado, o da umbanda, é mais colorido e leve. Sentir cada uma delas depende da sensibilidade e da fé de cada um — distingue.
Retorno espiritual
A religiosa atribui a Belzebu sua prosperidade financeira e criação de oportunidades. Foi em busca disso que ela o escolheu como uma espécie de guia na jornada espiritual depois de tentar diferentes práticas religiosas:
— Por dois anos frequentei cultos evangélicos, me batizei, rezava, ofertava valores e até jóias, e não sentia um retorno espiritual. Para Belzebu eu pedi menos do que eu poderia, e ele me deu mais do que eu imaginava — conta, e complementa: — É como o vento ou a internet, são coisas que a gente não enxerga mas faz uma troca de energia que se sente, geram uma conexão — compara.
Seu contato com esta espiritualidade começou ainda cedo, aos 9 anos de idade, ela conta. Internada e prestes a perder uma perna por conta de uma doença misteriosa, viu a mãe recorrer ao contato espiritual com entidades para solucionar o problema de saúde. Desde então, se sente acolhida pelas cores, ritmos e energias que encontra na umbanda, no batuque característico do Rio Grande do Sul e, posteriormente, na quimbanda.
— Muita gente diferencia as correntes das religiões de matriz africana entre magia branca e magia negra. Vejo um preconceito carregado nestas cores. Muita gente se sente bem usando roupa preta, e isso não quer dizer que sejam roupas que trazem algo ruim. É a mesma coisa com a fé — pontua Michelly.
Menos medo, mais respeito
O pesquisador Marcelo Tadvald relembra a origem destas religiões no Brasil e explica as impressões que entidades como Belzebu causam no imaginário de quem não as conhece:
— Do mesmo jeito que Ogum, Oxum, Iemanjá, Iansã e outras divindades cultuadas pelos africanos que vieram escravizados ao Brasil receberam uma representação alternativa quando precisavam disfarçar suas divindades em santos católicos. Exu foi associado ao demônio. Foi uma estratégia de sobrevivência da fé dessas pessoas. Com o tempo, aconteceu este processo de associar o mal a eles. Mas não existe esta ideia de bem oposto ao mal, como no cristianismo.
Mãe Michelly da Cigana acredita que cada pessoa está na terra "para exercer o que acredita, seja budista, evangélico, católico, macumbeiro":
— Acredito em Deus, um ser universal, que escolhe outras entidades evoluídas para ajudar ele a cuidar de nós, como é o pai Ogum, a mãe Iansã, a mãe Oxum. Essas entidades abraçam e cuidam de seus filhos. Cada um de nós vêm para esta terra para exercer o que acredita, seja budista, evangélico, católico, macumbeiro, e precisamos nos encontrar nisso.
Para o pesquisador, informação é ferramenta contra o preconceito:
— É preciso informação. As pessoas não precisam participar da fé alheia para entender ela. Cada um tem suas preferências, mas se educar e compreender, partindo do respeito e do aprendizado, é importante para diminuir os preconceitos — aconselha.