Em final de janeiro de 2022, um ciclo de mais de duas décadas de violência chegava ao desfecho trágico para uma família de seis pessoas no município de Alecrim, no noroeste do Estado. O assassinato de Teresinha Maria Sost antecedeu o suicídio do autor do crime, Valdir Jocelino Barbosa, companheiro com quem conviveu por mais de 20 anos e teve quatro filhos. A morte do casal deu início a um dos mais sensíveis resultados do feminicídio: restaram quatro órfãos, entre eles duas crianças.
Aos sete e 10 anos, as crianças da família estariam aptas para a solicitação dos benefícios previdenciários decorrentes da lei 14.717, que instituiu o direito a pensão especial para os filhos das vítimas de feminicídio no Brasil. Entretanto, a nova legislação ainda não gera acesso ao apoio financeiro por não ter sido regulamentada.
O texto aprovado pelo Legislativo em 2023 e sancionado em 1º de novembro passado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva define que filhos e dependentes menores de 18 anos e componentes de famílias com renda per capita mensal igual ou inferior a um quarto do salário mínimo podem solicitar o recurso.
— Tenho preocupação com a demora. Esta é uma necessidade que sempre existiu. Mas agora temos consciência dela. A regulamentação precisa ser ágil — avalia a autora do projeto que originou a lei, deputada federal Maria do Rosário (PT-RS).
A parlamentar explica que a análise da matéria para a regulamentação está sob responsabilidade compartilhada em setores do governo federal. Ministérios do Desenvolvimento Social e Assistência Social, Família e Combate à Fome; das Mulheres; dos Direitos Humanos e da Cidadania; e do Planejamento e Orçamento, além da Casa Civil, estão envolvidos no procedimento.
Para a deputada, a análise já supera o prazo de 60 dias por decorrência da complexidade do tema, que está relacionado com matérias previdenciária e orçamentária. Maria do Rosário afirma considerar que um decreto pode dar fim à espera pela vigência efetiva da lei ainda no começo de 2024.
Sob a guarda da irmã mais velha
Aos 22 anos, Micheli Sost Barbosa assumiu os cuidados emocionais e materiais dos irmãos pequenos. Cuida das demandas de habitação, alimentação, saúde, vestuário e material escolar apenas com o benefício da mãe somado ao que ganha fazendo faxinas e vendendo cosméticos.
— Para nós é um assunto muito delicado porque é uma coisa que jamais vai sair da nossa cabeça. Principalmente a falta que ela faz em nossas vidas — desabafa a primogênita.
Ela diz que o crime quebrou vínculos que existiam, desconstituindo a rede de suporte familiar que havia.
— Não é nada fácil. A única ajuda que tenho é a pensão pela morte da mãe, um salário mínimo. Por parte de mãe, temos um tio que, quando possível, vem vê-los e traz um pouco de atenção e carinho — conta.
"Os dependentes das vítimas sofrem duplamente"
Na análise da dirigente do Núcleo de Defesa da Mulher da Defensoria Pública do Estado, Liseane Hartmann, a lei revela um "olhar humano e solidário" que se deve lançar aos órfãos.
— Em razão da orfandade decorrente da morte violenta de sua genitora, crianças e adolescentes têm agravada sua situação econômica-social. Os dependentes das vítimas de violência sofrem duplamente ao vivenciar uma tragédia. Sofrem pela perda do ente querido e pelo desamparo na manutenção de suas necessidades — comenta.
A defensora pública também pondera que os crimes baseados em gênero não atingem igualmente as mulheres no Brasil.
— Dados estatísticos revelam que mulheres negras, indígenas ou pobres representam a maior parcela das vítimas de feminicídio. Dessa forma, o requisito financeiro estabelecido em lei garante que os filhos das vítimas que mais precisam da atenção do Estado sejam minimamente auxiliados nas consequências da orfandade e da pobreza extrema — analisa.
O que dizem os ministérios
A reportagem de GZH entrou em contato com três dos ministérios apontados como responsáveis pelo acabamento jurídico e administrativo da lei. O Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome confirmou que trabalha junto ao Ministério das Mulheres, ao Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania e ao Ministério da Justiça e Segurança Pública na regulamentação da lei e dos procedimentos para a operacionalização.
A Casa Civil da Presidência da República, por sua vez, apontou que a demanda não chegou formalmente para sua pauta e sugeriu contato com o Ministério das Mulheres, que ainda não respondeu ao pedido remetido ao final de dezembro.